A inviabilidade de um país
O ministro Alexandre de Moraes, do STF, tornou público o relatório do inquérito que abalou a República na última semana. O documento indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro e outras 36 pessoas pelos crimes de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de Estado e organização criminosa. Os indícios são claros: houve uma intensa movimentação, usando o aparato do Estado, para inviabilizar a posse de Lula. Apesar disso, é importante lembrar: Lula tomou posse.
Mas que houve planejamento para impedi-la, houve. Se vivêssemos num país com segurança jurídica e uma Justiça apolítica, e não apocalíptica, este inquérito não dividiria a nação. Estaríamos todos indignados com a mera cogitação da interrupção da democracia por agentes públicos, civis e militares. Mas não é o caso.
Como esperar que a população, aparvalhada pela polarização estúpida que nos assola como consequência de décadas de ineficiência da classe política à disposição, confie num ministro do Supremo que, ao vestir sua toga, se vê como arauto absoluto da democracia e não se constrange em ser vítima, promotor e juiz em um mesmo inquérito?
No texto que autorizou a operação da Polícia Federal na semana passada, Moraes foi o protagonista absoluto de sua própria decisão. Foram 44 citações a si mesmo. O presidente da República e seu vice, que também eram alvo do grupo que queria se manter no poder pela violência, aparecem 16 e 12 vezes, respectivamente.
A história do Brasil recente é pautada por frustrações profundas da nossa gente com o Judiciário. As operações Satiagraha e Lava-Jato são exemplos cristalinos disso. Os crimes que elas investigaram ocorreram, mas as irregularidades dos protagonistas anularam todo o processo e todos seguiram com suas vidas.
O destino de um país que não acredita na sua classe política é devastador, e somos todos testemunhas oculares deste flagelo. Mas o destino de um país que não acredita na sua Justiça - não porque não quer, mas porque não encontra subsídios para isso - é ainda mais tenebroso. Como diria Ruy Barbosa, contra a Justiça, não há a quem recorrer. _
Ouvir o coração
Dom Jaime Spengler
Arcebispo de Porto Alegre e presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Habituados a viver numa sociedade na qual o que importa é calcular, produzir e consumir, corre-se o risco de desconsiderar a dimensão humana dos sentimentos, ou seja, a necessária escuta do coração. Os sinais de tal situação são inocultáveis! A exacerbação do eu e a aceleração sempre maior da vida cotidiana dificultam a salutar atividade de escutar o coração. Num mundo sem coração tudo se torna hostil, sem acolhimento, solidariedade, paixão!
Experimentamos uma desvalorização do conceito "coração", consequência do racionalismo e do materialismo que preferiram conceitos como razão, vontade ou liberdade, convertendo-nos em consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado.
Vale recordar que o coração significa não somente um órgão vital do corpo, responsável pela fruição da vida, mas também um espaço privilegiado de decisões, pois "o coração tem suas razões, que a própria razão não conhece: percebe-se isso em mil modos" (Pascal, fr. 277).
O coração aponta para uma dimensão da existência a que o empirismo científico não tem acesso; ele expressa aquilo de mais íntimo que o ser humano tem, manifestando experiências vitais, que exigem empenho para serem captadas no seu vigor.
Quando não se dá "o devido valor ao coração, desvaloriza-se também o que significa falar a partir do coração, agir com o coração, amadurecer e curar o coração. Quando não consideramos as especificidades do coração, perdemos as respostas que a inteligência por si só não pode dar, perdemos o encontro com os outros, perdemos a poesia. E perdemos a história e as nossas histórias, porque a verdadeira aventura pessoal é aquela que se constrói a partir do coração" (Papa Francisco).
O coração possui uma flexibilidade que se adapta aos diversos aspectos do que se ama; dos olhos vai até o coração e dos movimentos exteriores conhece o que acontece no seu interior. Quando coração e razão caminham juntos, o amor dá muito prazer, porque junto se tem a força e a flexibilidade do espírito. _
Direto da Redação - Paulo Germano
O capacho brasileiro
Dá um cansaço, sabe? Não existe argumento que faça as pessoas refletirem. Em que momento mergulhamos nesse servilismo patético? Eu sei, não é novidade, mas ainda me surpreende a postura de capacho que tanta gente incorporou.
É saudável ter um mestre, claro, eu mesmo tenho vários: são eles que me ajudam a interpretar, questionar, compreender, ponderar, mas nenhum deles tem o poder de me anular. O que vemos hoje, em um fenômeno que atinge dos mais ignorantes aos mais letrados, é uma cegueira obediente que glorifica um sacerdote e abre mão de qualquer senso crítico.
O simples ato de pensar diferente do grande líder, ou seja, pensar por conta própria, já faz de você um inimigo. Aliás, vale lembrar que pensar por conta própria é a mesma coisa que só pensar. Porque pensar segundo padrões já estabelecidos - seja por convicções políticas, religiosas, morais ou culturais - não é pensar, é reproduzir pensamentos prontos.
E essa claque só faz isso. São incapazes de colher a opinião de seus mestres e, a partir delas, construir suas conclusões. Seus mestres nunca são um meio, um instrumento, um recurso a serviço do melhor caminho; eles são a personificação desse caminho, são a mais pura expressão da Verdade e da Certeza, portanto obedecer-lhes é uma honra, servir a eles é um orgulho, enaltecê-los é um tributo ao bem-estar da humanidade.
Quer dizer: um cidadão assim não pode, de jeito nenhum, reconhecer que seu líder errou. Porque, se reconhecer, a vida dele acaba. Ele viveu para exaltar esse líder, brigou com meio mundo para defendê-lo. Se parar de idealizar esse herói, a existência perde o sentido - e todos nós precisamos de um sentido para a nossa existência.
Isso explica o ódio à imprensa, inclusive. Afinal, se o mestre nunca erra, qualquer informação que atentar contra a perfeição do semideus será sempre conspiratória. Não há espaço para a dúvida, para a análise honesta dos fatos, para a percepção de que todos, sem exceção, somos falíveis.
E, antes de concordar com entusiasmo, pensando nas hordas cegas que idolatram o líder que você despreza, responda-me sinceramente: no fundo, você não faz igual? Ao condenar o servilismo alheio, não estaria você venerando seu próprio mestre, como se fosse ele o salvador? É fácil enxergar o capacho na casa dos outros. Difícil é perceber quando estamos ajoelhados, nós mesmos, diante do altar.