04 DE SETEMBRO DE 2021
REFLEXÃO
LEVEZA COM A IMPERMANÊNCIA
AINDA CHEIA DE LUCIDEZ E SAÚDE, MINHA VIZINHA DE 77 ANOS, A SILVINHA, ENCARA A FINITUDE COM TANTA NATURALIDADE, QUE SURPREENDE
Uma vizinha fora do comum, que se tornou amiga há alguns anos, chega ao meu apartamento muito indignada. Revisando os papéis da própria cremação, que ela pagou há anos, Silvinha descobriu que o corpo é levado para outra cidade. Estava decidida a partir pra briga com a empresa, entendendo que o velório todo seria longe das pessoas queridas que ela quer "ver" no funeral. Expliquei que a cerimônia de despedida deve ser mesmo em Porto Alegre, e a cremação em si pode acontecer em outro local. Assim, consegui tranquilizá-la.
Esta mulher de 77 anos, cheia de lucidez e saúde, ainda pode viver muito tempo, mas encara a finitude com tanta naturalidade que surpreende. Não foi ao acaso encontrá-la, eu que simplesmente caía no desespero só de falar em morte. Nossas conversas me ajudaram muito a internalizar o conceito de que a vida é um ciclo, é pura impermanência. Mas ela conta que nem sempre foi assim, foram anos de investimento emocional e espiritual.
Gosto de dizer que minha vizinha é um culto ecumênico onde cabem várias crenças, todas praticadas com a mesma fé. Católica, costuma ir à missa aos domingos sempre que pode, não com o peso de um compromisso inadiável. Diariamente, faz parte de um grupo de oração, e, aos sábados, frequenta um grupo de budismo. Já fez peregrinações, pratica meditação e o oriental Tai Chi Chuan e é voluntária numa instituição que cuida de crianças.
No testamento, determinou o que quer que façam dos seus bens. Não quer é dar incômodo pra ninguém e, para isso, a documentação está em dia. Os telefones do gerente, do advogado, de parentes próximos e da funerária estão à vista. Por enquanto, vai desfrutando um dia de cada vez, quase sempre com o astral lá em cima. Se a tristeza bate, se recolhe um tempo e, depois, volta faceira.
Não é sobre as milhares de mortes que a maior parte de nós tem acumulado e chorado. Mas, nestes tempos de perdas dolorosas, soa como um alento esta serenidade. Quando terminamos o papo, Silvinha saiu corredor afora cantando o clássico do Hermes Aquino, aliás, uma letra que ela usou na juventude para terminar um namoro. "Eu sou nuvem passageira, que com o vento se vai... Você não vê que a vida corre contra o tempo? Sou um castelo de areia na beira do mar". Somos, Silvinha, somos! E é esta consciência que nos torna melhores, e bem mais leves.
DANIELA SALLET (*)
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