quarta-feira, 27 de abril de 2011



27 de abril de 2011 | N° 16683
DAVID COIMBRA


O brigão, o pacífico, o grandão, o bom em tudo

O Renato e o Ronaldo eram gêmeos. Idênticos, só que completamente diferentes. O Renato era a própria brandura, quieto, quase tímido. O Ronaldo, expansivo, confiante, brabo que nem um cachorro. Gostava de brigar, o Ronaldo, e quando brigava se transformava em um profissional dos punhos.

Encarava o adversário com a frieza assassina do Bruce Lee e o castigava com a precisão cruel do Muhammad Ali. Não desferia chutes, não aplicava gravatas, nem cabeçadas, só murros secos e certeiros, TUC!, no nariz, mais um direto, TC!, no olho, e outro ainda, curto e fatal, T!, no queixo. Vi o Ronaldo transformar caras bonitas em xis-bacon. O Renato olhava aquilo, suspirava e balançava a cabeça:

– Esse meu irmão...

O Ronaldo era gremista; o Renato, colorado.

O Raimundão tinha dois metros de altura e usava bigode. Jogava no gol. Chegava ao Alim Pedro todo vestido de preto, com uma capanga preta debaixo do braço. Todo mundo sabia que havia um trezoitão adormecido dentro daquela capanga. O Raimundão entrava na grande área em silêncio, caminhava para o fundo do gol, a capanga presa no sovaco, e a acomodava no fundo da rede. Todo mundo ficava olhando para aquela capanga. O Raimundão era colorado.

O Diana a gente chamava de Diana por causa da cachorra dele, que se chamava Diana. Uma vez o Raimundão se irritou com o Diana por algum motivo e saiu correndo atrás dele. Nossa, se o Raimundão pegasse o Diana ia ser uma covardia, o Diana ia virar patê. Mas o Diana era ligeiro, voou pela porta de entrada do edifício dele, subiu as escadarias de três em três degraus e se homiziou na segurança do lar.

E não é que o Raimundão, no afã de alcançar o Diana, deu um pataço na porta do apartamento e a arrombou? Foi o maior barulhão, a porta caiu, a mãe do Diana se sentiu mal, um escândalo. Daquela vez, o Diana até que se deu bem, o Raimundão foi embora sem tocá-lo. Doutra, não. Foi quando ele apostou que o Grêmio ia ser campeão.

– Se o Grêmio não for campeão, eu pasto! – prometeu o Diana.

Estávamos nos anos 70, o Inter com aquele supertime. O Diana comeu a grama da ponta-esquerda do Alim Pedro. A ponta-esquerda de quem chuta em direção à Plínio. O Diana, claro, era gremista.

O Edu protegia o Diana. O Edu sabia brigar, uma vez deu num neguinho da Frei Caneca, os neguinhos da Frei Caneca eram nossos inimigos e aquele neguinho, um rengo, aquele era o mais perigoso deles. Pois o Edu deu um pau naquele neguinho, mas deu-lhe que deu-lhe. Foi lindo. O Edu era bom em tudo. Jogava na meia, batia de direita e a bola zunia virada num paralelepípedo quando ele pegava no peito do pé.

O saque dele, no pingue-pongue, saía de revesgueio, ninguém rebatia. E o inhaque do Edu quebrava as jogas de todo mundo, uma potência. O Edu era gremista.

O Zé Fernandes e o Barril eram dois irmãos, muito parecidos, mas não gêmeos como o Renato e o Ronaldo. O Zé era o dono da bola, a única bola da zona, de couro, grandona, vermelha, costurada à mão, oficial.

A mãe do Zé não deixava que ele saísse de casa, ele tinha que ficar estudando. Deu certo, hoje o Zé é arquiteto, mas na época era um saco, era difícil de conseguir a bola dele emprestada.

Quando podiam jogar, o Zé e o Barril faziam a mesma coisa: ficavam lá em cima, na banheira, esperandinho. Sempre faziam gol. O pai deles às vezes ia olhar o jogo. O pessoal dizia que o Zé e o Barril apanhavam, se não marcassem gol. Acho que não era verdade, mas, se fosse, eles não apanhavam nunca. Eles sempre faziam gol. O Zé e o Barril eram colorados.

O Marcelo Gordo tinha um troço que era de espantar. Ele estava lá, jogando bola com a gente, a peladinha animada e, de repente, o Marcelo Gordo erguia as orelhas, espetava o indicador no ar, olhava para cima e avisava:

– Meu pai está me chamando.

E saía correndo. Nós ficávamos irritados, ninguém nunca ouvia nada, pai chamando coisa nenhuma.

– Que teu pai tá te chamando, Marcelo Gordo!

O Marcelo Gordo jurava: – Ele tá assobiando!

E saía correndo, desfalcando um time. Irritante. Um dia, resolvemos apurar aquilo. No meio do joguinho, o Marcelo Gordo:

– Meu pai está me chamando!

E saiu correndo, como sempre. Só que nós saímos atrás dele. Seguimos o Marcelo Gordo pelas ruazinhas do IAPI e, quando chegamos à esquina da casa dele, o que vimos? O pai do Marcelo Gordo parado, de pé, as mãos fincadas à cintura, o queixo levantado, a boca num biquinho.

Não parecia sair nada dos lábios do pai do Marcelo Gordo, só vento, mas o Marcelo Gordo ouvia um assobio, que nem um cachorro ouvindo apito de dono. Alguém um dia vai ter que me explicar aquilo.

E agora, pensando no Marcelo Gordo, me ocorre que não sei se o Marcelo Gordo era gremista ou colorado. Como pode??? Na terra do Gre-Nal, a primeira coisa que tem que se saber de alguém é se é gremista ou colorado. Que mistério, aquele Marcelo Gordo. Que absurdo.

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