quarta-feira, 13 de abril de 2011



13 de abril de 2011 | N° 16669
DAVID COIMBRA


Histórias do Deus dos Exércitos

Está certo, faz tempo, 38 séculos é muito. Mas o fato é que Deus mandou Abraão matar o próprio filho. Uma história intrigante e, mais, esclarecedora. Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que aquele deus não era exatamente o deus dos cristãos. Aquele deus, o “Inefável”, era tão temido que Seu nome não poderia ser pronunciado.

Mesmo assim, pronunciavam. Em hebraico, YHVH tornou-se Javeh e suavizou-se em Jeová. Um ex-centromédio do Grêmio que protegia muito bem a zaga, Jeovânio, prestava, com seu nome, homenagem a Jeová.

Na Bíblia hebraica, o Tanah, chamado pelos cristãos de Velho Testamento, Jeová é um deus ciumento, colérico e belicoso. O Deus dos Exércitos. Um Deus que escolheu um povo em detrimento dos outros, escolha que, não raro, converteu-se em um fardo para esse povo. Porque Jeová era dado a impingir vinganças e a solicitar provações. A mais cruel de todas aquela imposta a Abraão: o assassínio de seu filho.

A mulher de Abraão, Sara, era estéril. Para não deixar o marido sem descendência, ela foi sensata como deveria ser toda mulher: escolheu uma bela escrava para que se refestelasse com Abraão e, por consequência, reproduzisse.

Deu certo. Reproduziram. Foi gerado um menino, Ismael, “Deus ouviu” em hebraico. Porém, quando Sara já tinha 90 anos, e Abraão 100, um anjo apareceu e anunciou que ela ficaria grávida. Ela deu risada. Ficou grávida. Teve o filho, e Abraão o chamou de Isaac, que significa “ele riu”. No caso, ELA riu.

Por essa altura, Ismael tinha 13 anos. Sara, temendo que o menino mais velho se tornasse herdeiro do clã, convenceu Abraão a mandá-lo embora, junto com a mãe. Sara deve ter incomodado muito Abraão, você sabe como as mulheres incomodam quando querem uma coisa.

Não suportando mais a insistência da mulher, ele expulsou a escrava e o menino para o deserto munidos com nada mais do que um odre d’água e um pouco de pão. Fosse por Abraão, morreriam de sede, mas Jeová providenciou uma fonte d’água, os dois se salvaram e Ismael transformou-se no pai de todos os povos árabes, que hoje, ameaçadores, cercam os seus meio-irmãos hebreus por todos os lados.

Abraão, então, ficou tão-somente com Isaac como filho. E foi esse filho que Jeová exigiu em sacrifício. Falou, com sua voz de Cid Moreira:

– Abraão! Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que eu te indicarei!

Abraão obedeceu. Tomou o filho e foi para o local indicado. Depois de três dias, encontrou o lugar. Amarrou Isaac numa pedra, como se fosse um cordeiro. Empunhou uma faca de bom corte. Ergueu a mão. Estava prestes a degolar o menino, quando Jeová gritou lá de cima com seu vozeirão de Mister Pi:

– Abraão! Abraão! Não estendas tua mão contra o menino e não lhe faças nada! Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio filho, teu único filho!

Era um teste! Agora pense no que representa essa história. Eu, se fosse Abraão, recusaria com veemência o pedido do Senhor. Diria:

– Que tipo de divindade és Tu, que pede o assassinato de uma criança?

E se Ele insistisse, eu repetiria: – Não! Pode arranjar outro patriarca!

Mas, se eu fosse adiante, amarrasse o menino e só tivesse minha mão assassina detida no último instante, aí sim me enfureceria. Xingá-lo-ia:

– Ei! O Senhor não sabe de tudo? Não é onisciente? Onipotente? Onipresente? Não vê inclusive dentro dos corações dos homens? Então, que espécie de cilada é essa? Foi só para me torturar? Pode arranjar outro patriarca!

Eu não seria um bom protagonista para essa história, portanto. Porque o autor da história, o que ele pretendia com ela era exaltar a fé de Abraão, para que essa fé servisse de exemplo e guia, como serviu. O autor queria dizer à posteridade: sua fé está vacilando? Seu fraco! Abraão ia matar o próprio filho porque o Senhor ordenou, e você treme diante de uma perseguiçãozinha do governo?!?

A fé, era isso que o autor queria propalar. A fé, que é base de todas as religiões. A fé, que, Mencken já definiu, é a crença ilógica na ocorrência do improvável. Foi essa fé que manteve unido o povo hebreu por quase 40 séculos, que moldou o cristianismo e o islamismo. A fé, que existe dentro de cada homem, nada mais é do que a necessidade de acreditar em algo além do homem, em uma razão excelsa para existir. A fé que, modernamente, pode ser chamada de fanatismo ou idealismo.

Alguns se fanatizam por Deus, outros por uma ideia política. Por aqui, há quem se fanatize por um clube de futebol. A ponto de tatuar um distintivo no braço e proclamar que aquela entidade é seu “único amor”. Não é um fanatismo diferente do religioso, do político, do que defende animais ou restrições alimentares.

Mas a culpa não é da religião, nem da ideia política, nem do futebol. O fanático é irracional. Ele PRECISA ser fanático. Se não fosse por um motivo, seria por outro. O motivo não tem de ser bom, e pode até ser tolo. Muitos o são. Mas nenhum mais tolo do que ser fanático por um clube de futebol.

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