segunda-feira, 28 de julho de 2008


MOACYR SCLIAR

Velório temático

Velórios e enterros faziam parte do seu cotidiano; o tema era freqüente na família e nunca o amedrontou

Funerária do interior de SP promove velório temático inspirado na vida do morto. Um enterro em que o defunto, sempre o personagem principal, recebe cenário e produção artística.

Uma funerária do interior de São Paulo passou a promover recentemente velórios temáticos em que são feitas homenagens ao morto com aquilo que ele fez de melhor ou mais gostava de fazer em vida.

O negócio é assim: defunto pescador ou fã de pescaria, velório com anzóis, caniço, molinetes, redes, e até motor de popa usado no barco. Em geral, os adornos são peças e objetos pessoais que pertenceram ao morto e são doados pelos familiares para montar o cenário fúnebre.

Entre os velórios temáticos já realizados pela funerária, estão os relacionados a futebol (com uniforme, meião, chuteira, bola profissional e troféus que o morto recebeu em vida) e a rodeios (com chapéu, cinto e botas de couro, sela de montaria, espora e toda a indumentária dos peões).

Dependendo da produção, cada velório temático custa entre R$ 1.000 e R$ 10 mil.

Cotidiano, 25 de julho

PASSEI MINHA VIDA NA FUNERÁRIA , costumava dizer aos amigos, e isto não estava muito longe da verdade; a casa em que nascera, por exemplo, ficava junto mesmo à funerária Boa Viagem, há anos patrimônio de sua família.

Velórios e enterros faziam parte do seu cotidiano. Era um assunto constante no almoço e no jantar. Coisa que a ele não amedrontava; ao contrário, costumava brincar de esconde-esconde nos caixões.

Foi ao colégio, claro, e era bom aluno; a mãe queria que estudasse medicina, mas ele recusou: seu sonho era trabalhar com o pai na funerária. "Pretendo entregar a mercadoria diretamente ao Senhor", gracejava. "Nada de intermediação."

E assim, no devido tempo assumiu a direção da pequena empresa. Mas, ao contrário do pai, que se mostrara muito bem sucedido no ramo, não tinha sorte. Sofria a concorrência de outras funerárias, muito mais hábeis no atendimento às pessoas enlutadas.

Aceitavam cheque pré-datado, ofereciam brindes. Uma delas, por exemplo, propunha uma ousada promoção: para cada três mortos que uma família enterrasse, o quarto era de graça.

E assim ele foi perdendo clientes. Já não conseguia sequer pagar as despesas e estava à beira da falência.

O pior é que já não era novo, estava com mais de 50 anos, e não se sentia em condições de enfrentar a competição.

Foi então que leu a notícia sobre os velórios temáticos. E aquilo foi uma verdadeira inspiração. Sim, a solução de seus problemas poderia estar ali.

Porque imaginação não lhe faltava para bolar velórios daquele tipo. Se, por exemplo, um balonista falecesse, poderia levar o caixão para o cemitério num balão. Algo sensacional, consagrador. Mas sua alegria durou pouco tempo.

No dia seguinte uma das funerárias rivais exibia um cartaz com os dizeres, em letras garrafais: "Oferecemos velórios temáticos". E a ilustração mostrava um balão transportando um caixão.

Aquilo foi demais. Na mesma hora ele teve um ataque cardíaco, que evoluiu mal. Pouco antes de falecer, um amigo perguntou se ele queria um velório temático. Ele sacudiu tristemente a cabeça: "Minha vida foi, ela própria, um velório temático". Fechou os olhos e expirou.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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