terça-feira, 22 de julho de 2008



22 de julho de 2008
N° 15670 - Moacyr Scliar


A polêmica do insulfilme

A morte do menino João Roberto Amorim Soares, baleado pela polícia dentro do carro da família no Rio de Janeiro, suscitou revolta e polêmica.

Esta centrou-se basicamente no treinamento (ou falta de treinamento) dos policiais, mas outros pontos foram levantados. Um deles: até que ponto o insulfilme que revestia os vidros do veículo acabou prejudicando a família?

O insulfilme é uma película de poliéster coberta com uma camada fina de metal. Para quem está dentro do veículo, esta película é transparente, praticamente não atrapalha o motorista; a luz do sol penetra pouco e o olhar de quem está fora menos ainda. O uso, desde 1998, é legal, desde que o material apresente uma transparência mínima de 50%.

Os adeptos do insulfilme dizem que a película diminui o esforço ocular ao dirigir e que reduz o calor dentro do carro, conservando melhor o estofamento. Impede também o vidro de estilhaçar-se, quando atingido por uma pedra, por exemplo.

Mas o grande argumento é o da privacidade e segurança: de fora, não dá para ver o interior do carro. Com isto, prováveis assaltantes não sabem o que poderão encontrar. E quem, por qualquer razão, não quer ser visto, tem na película uma proteção.

Estas são as notícias boas. As ruins, além do erro da polícia antes mencionado, são que não apenas os motoristas e os passageiros têm privacidade; qualquer intruso também a terá.

Em sua coluna da Folha de S. Paulo, Ruy Castro conta que um conhecido sofreu um seqüestro relâmpago em seu carro revestido de insulfilme. Resultado: os seqüestradores puderam rodar com o seqüestrado à vontade, sem receio de serem perturbados.

Há um outro aspecto, este desconcertante. O motorista que é fechado por outro já não pode emparelhar seu carro com o do imprudente e olhar feio ou fazer sinais de qualquer tipo, ameaçadores ou obscenos.

Pergunta: isto é bom ou é ruim? Em primeiro lugar, é preciso dizer que é uma coisa muito comum, uma freqüente forma de comunicação não-verbal.

Que surge cedo na vida. Um estudo realizado no Canadá mostrou que bebês sorriem mais quando os pais estão olhando para eles. Este olhar também facilita o reconhecimento, pela criança, do rosto do pai e da mãe.

Até aí, tudo bem, mas quando se trata de adultos a coisa muda. Em geral as pessoas não gostam de ser miradas, sobretudo fixamente. "Nunca me viu?" é a frase que comumente traduz a irritada reação de quem está sendo olhado. No sudeste asiático é uma grosseria olhar fixo para outra pessoa.

O olhar fala, como sempre o souberam os caudilhos e ditadores latino-americanos. Os óculos escuros que usavam, e que numa época tornaram-se marca registrada, tinham o objetivo de silenciar esta potencial fala, de tornar o autocrata uma pessoa enigmática, de desígnios tão insondáveis quanto poderosos.

O olhar penetrante, como diz o adjetivo, penetra nas pessoas. Não por outra razão os americanos usam a expressão "eye contact", contato ocular.

É um contato, mas um contato - perdão pelo trocadilho, leitores - sem tato, que pode facilmente levar à agressão verbal e física. "Avoid eye contact", evite o contato ocular, é um conselho freqüentemente dado nos Estados Unidos, e um filme de animação sobre Nova York tem exatamente este título.

Bem, o insulfilme está evitando o contato ocular entre os motoristas. De novo: é bom, isso? As opiniões variarão.

A turma do deixa-disso dirá que sim. Aqueles que se frustram quando não descarregam a agressividade dirão que não. Melhor seria se, no carro ou em qualquer outro lugar, pudéssemos nos olhar as pessoas sem desconfiança, sem raiva.

É ótimo isolar a luz e o calor, é bom proteger o carro. Mas carros não são pessoas. Nestas, a transparência é, ou deveria ser, uma virtude.

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