03 DE OUTUBRO DE 2023
NÍLSON SOUZA
Lendas e sustos
Aconteceu na primeira tarde ensolarada depois do dilúvio que se abateu sobre nós. Após percorrer o circuito das lendas urbanas de Porto Alegre no Museu Joaquim Felizardo, eu me dirigia para a saída do Solar Lopo Gonçalves - casarão de quase 200 anos construído na antiga Rua da Margem, atual João Alfredo - quando uma mulher apareceu de repente, saindo de uma das paredes. Foi um susto. Se a visita tivesse ocorrido à noite, acho que eu estaria correndo até agora.
Conduzido amavelmente pela museóloga Luciana Oliveira de Brito, recém havia cruzado com os personagens reais das histórias escabrosas pesquisadas pela professora Marli Rejane d?Ávila Pereira e ilustradas pela arquiteta Mari Froner. Na mesma sala estão Maria Degolada, o escravo que amaldiçoou a Igreja das Dores, os criminosos da Rua do Arvoredo, a prisioneira do Castelinho do Alto da Bronze e a índia Obirici - se é que não me esqueci de ninguém.
Todos e todas me dizem mais do que suas controversas lendas. Em uma de minhas primeiras reportagens como jornalista profissional, estive na Vila Maria da Conceição e no local onde a moça alemã teve o pescoço cortado pelo namorado em 1899, crime de tanta repercussão que a degolada virou santa por obra e graça da crendice popular. Do negro Josino sei pouco além das versões desencontradas de sua injusta execução, mas sempre que passo pela Igreja das Dores lembro que aquela escadaria e aquelas torres testemunharam muitas atrocidades nos tristes tempos da escravidão.
A prisioneira do Castelinho, falecida dois anos atrás, foi entrevistada por meu ex-colega Juremir Machado da Silva, para um livro que tive a honra de prefaciar. Como nasci no bairro Cristo Redentor no tempo em que ainda se chamava Passo da Areia, passei a infância ouvindo a história de Obirici, que chorou um riacho de areia por ter perdido o duelo de flechas pelo namorado.
Já li, reli e treli sobre o açougueiro da Rua do Arvoredo, tanto em jornais da época quanto nos livros de escritores amigos. Desses, destaco O Maior Crime da Terra, do historiador Décio Freitas, que frequentava minha sala de trabalho e que também me deu um susto depois da sua própria morte. Saí do jornal pela madrugada para me despedir dele no velório realizado no Solar dos Câmara. Em determinado momento, saíram todas as pessoas da sala e me vi sozinho com o finado naquele palacete histórico e fantasmagórico. Logo, porém, os familiares retornaram do café e pude então me retirar.
Ah, a mulher da parede era uma funcionária do museu, que simplesmente atravessou uma porta que eu não havia percebido.
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