quarta-feira, 31 de dezembro de 2014


31/12/2014 e 01/01/2015 | N° 18029
MARTHA MEDEIROS

Para iniciar bem o ano

Selecionei algumas frases de pessoas célebres e outras nem tanto, a fim de montar um mosaico que nos faça relaxar e refletir sobre essa aventura insana que é viver. Levantar de manhã já pode ser considerado um esporte radical, então está aí um kit de sobrevivência para nos socorrer quando estivermos ligeiramente em pânico e levando tudo a sério demais.

– Se quiser fazer Deus rir, faça planos. (aforismo iídiche)

– É preciso ter altos e baixos. De outra forma, você não saberia a diferença. Seria tudo uniforme, linha reta, como olhar para um monitor de batimentos cardíacos. E, quando rola aquela linha reta, baby, você está morto. (Keith Richards)

– Segurança não é ausência de perigo; segurança é o gerenciamento do medo. (Wendy Reid Crisp). – Sossega, porque nada há que esperar, e por isso nada que desesperar também. (Fernando Pessoa)

– Felicidade se acha é em horinhas de descuido. (Guimarães Rosa)  – As coisas boas vêm com o tempo. As melhores, de repente. (Denise Lessa)

– Tudo é saudável, menos interrogar-se constantemente sobre o sentido dos nossos atos. (E.M. Cioran) – Desconfio/dessa coisa/de pessoas do bem/e pessoas do mal/acho que só existem/as sensíveis/e as sem sal. (Josué Orsolin)

– Ninguém vale pela sua ascendência, pelo lugar onde nasceu nem pela tradição a que pertence, mas cada um vale pelo que conseguirá fazer da sua vida. (Contardo Calligaris)

– É melhor buscar a verdade do que a glória. Que humilhação ter a aprovação dos outros como objetivo. (E.M. Cioran)

– Aquele que não dispõe de dois terços do dia para si é um escravo. (Nietzsche)

– Eu gostaria de fazer um grande filme, desde que isso não atrapalhe minha reserva para o jantar. (Woody Allen) – O objetivo da psicanálise não é curar as pessoas, mas mostrar que não há nada de errado com elas. (Adam Philips)

– O custo de uma coisa é a quantidade de vida que se tem que dar em troca. (H.D. Thoreau) – Se você for sempre o guia, só vai chegar aonde já conhece. (Maria Rezende) – Um passo à frente e já não se está no mesmo lugar. (Sandra Flanzer)

– As pessoas se dirigem a Deus para obter o impossível. Para o possível, os homens bastam. (Pedro Maciel)

– Nunca vou entrar no céu. Minha esperança é um telão do lado de fora. (Dirceu Ferreira)


– Hoje é um bom dia para continuar insistindo. (Caio Fernando Abreu) - Desejo a todos um ano que valha o esforço de viver. (Nélida Piñon)

31/12/2014 e 01/01/2015 | N° 18029
ARTIGOS ZH - LUIZ CARLOS CORRÊA DA SILVA*

SÓ DEPENDE DE NÓS

O clima assustador que nos atormenta deve-se não apenas aos indicadores econômicos e às más notícias do setor político, mas particularmente ao crime

organizado e à impunidade. Corrupção sempre existiu, mas agora as proporções são gigantescas e seus protagonistas são mais graduados e audaciosos, por terem fortes ligações com o poder e a certeza da impunidade. Assistimos estarrecidos a essa agudização da vergonha nacional e ao desgaste progressivo das instituições. Valores, princípios morais, seriedade e confiança são enxovalhados por pessoas que jamais poderiam ocupar os importantes cargos que lhes foram oferecidos. Não dá para continuar o loteamento político de cargos técnicos!

Atingiu-se o clímax com esse pacto corporativo interdisciplinar de corrupção, vindo finalmente à tona o que se passava nos bastidores. Como é que se deixou acontecer toda essa sujeira sem fiscalização e sem medidas de controle? Será que tem de ser assim? Será que não temos capacidade de agir e reagir?

Sim, nós podemos mudar. E a primeira mudança é recuperar a confiança, acreditar que o Brasil pode melhorar, e muito, desde que cada um faça muito mais e melhor.

Nossos representantes não podem mais pactuar com o crime em troca de apoio parlamentar, esse grande nó da governabilidade que contamina o ambiente político. Não podem entregar as chaves dos cofres públicos para os bandidos e depois dizer que nada sabiam. Isto precisa mudar, e já!

A construção dessa mudança inclui, necessariamente, ações como enxugar a máquina, não desperdiçar e ter transparência. Impor foco máximo na educação. Privilegiar a saúde. Proteger mais os jovens. Investir pesado num estilo de vida populacional mais saudável. Responsabilizar empresas por danos que estejam causando. Hierarquizar o Estado como soberano e sempre acima do governo. Exigir seriedade e limpidez na relação entre governo, partidos políticos e interesses pessoais e setoriais. Consagrar cumprimento de direitos e deveres.

Se 2015 tiver pelo menos um pouco de tudo isso, haverá um grande avanço. É preciso acreditar na nossa capacidade, trabalhar e exigir mais de todos. Cidadania é compromisso, exigência e participação. Omissão favorece corrupção. Só depende de nós.

Vamos fazer?


*Médico da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre - LUIZ CARLOS CORRÊA DA SILVA

31/12/2014 e 01/01/2015 | N° 18029
DAVID COIMBRA

O deus de duas faces

Já passei o Réveillon em Paris. Não gostei. Fui para a Champs-Élysées ao bimbalhar da meia-noite, conduzido pelo meu amigo Fernando Eichenberg, o Dinho, para ver a clássica celebração de Ano-Novo dos parisienses. Pelas barbas de Catherine Deneuve, foi horrível! Os franceses levam champanhe nacional para a rua e, depois de beber tudo pelo gargalo, abrem grandes círculos humanos e começam a jogar as garrafas no meio. As garrafas se quebram, naturalmente, e os cacos de vidro afiados ficam espalhados pelo chão. Às vezes, um francês bêbado atravessa o círculo, em desafio aos outros franceses bêbados, que atiram as garrafas enquanto ele passa. É um troço PERIGOSO!

Também já passei o Réveillon em vários pedaços das fímbrias do Atlântico, do Rio de Janeiro ao Uruguai, passando por Xangri-lá. Algumas festas foram gloriosas, outras nem tanto. Mas tem uma coisa que me incomoda no Réveillon do litoral: os foguetes. Não os fogos, que são bonitos; os foguetes. Não gosto de foguete. Não gosto, cara, não gosto. Os gatos ficam nervosos, os cachorros ficam nervosos, eu fico nervoso e todos temos razão. Para que aquela barulheira toda? Não consigo entender isso. Sinto-me tão inseguro com as explosões quanto com as garrafas quebradas nas calçadas de Paris.

Nos anos 80, tive um Réveillon singular. Morava em Criciúma, trabalhava no Diário Catarinense e estava duro, durango. Não tinha nenhum, mas nenhum mesmo, nem para comprar um único cachorro-quente sem molho. Brabeza. Namorava a Janinha, que hoje está casada com um grande cara, o Oderson. Com ele, ela tem uma linda filha e vivem, os três felizes, no Paraná.

Ocorre que, meses antes, eu havia feito uma aposta com o Nenê, dono de um bar que ainda vigora na cidade, o Varandas. Havíamos apostado um engradado de cervejas, e eu ganhei. Sentia vergonha de cobrar a aposta, mas a Janinha sempre foi despachada, sobretudo num momento de necessidade como aquele. Ela foi ao bar, lembrou a aposta, pediu o engradado e o Nenê, bom perdedor que é, deu. Para arrematar, ela disse que queria uma pizza e mandou o Nenê pendurar a conta num cabide ali atrás do balcão. Fomos para o meu apartamento, no 10º andar de um edifício a duas quadras de distância, e passamos a noite inteira comendo pizza, bebendo cerveja e rindo, até o alvorecer na região carbonífera. A cidade estava vazia, ninguém fica em Criciúma no Réveillon, tínhamos só pizza e cerveja e nenhum centavo. E foi muito divertido!

O que a gente precisa, para fazer uma boa festa, é gente de quem se gosta. As mais belas praias do mundo ou a avenida por onde desfilou Napoleão são dispensáveis.

Agora, vou passar o Réveillon com minha pequena e unida família, eu, minha mulher e meu filho, no extremo nordeste dos Estados Unidos, numa temperatura de sete graus abaixo de zero, e me sinto muito feliz. Poderia ter mais amigos por perto, poderia estar mais quente, poderia ter o chope brasileiro para brindar antes e depois do champanhe, mas você tem de se divertir com o que está à disposição, não é?

Esse é meio que um lema que me guia.

Uma data como o Réveillon presta-se para exercer esse lema, ou para refletir a respeito. Janeiro, não por acaso, é o mês de Jano, o deus de todos os finais e de todos os começos, o deus de duas faces, uma olhando para frente, outra olhando para trás.


Quando olho para trás, vejo dificuldades que enfrentei, sim, claro que as vejo, mas vejo, também, as pessoas que me ajudaram a enfrentá-las. São tantas e seu amor é tão poderoso... As pessoas. Como já disse, para se fazer da vida uma boa festa, só se precisa de pessoas de quem se gosta. Elas estão ao meu lado aqui, no norte do mundo, e também aí, no sul do Brasil. E eu estou com elas. É certo. Como puder, sempre estarei com elas. Olhando para a frente, vejo-as comigo. Por isso, a outra face de Jano, a que mira 2015, observe, veja bem: ela está sorrindo.

31/12/2014 e 01/01/2015 | N° 18029
L. F. VERISSIMO

Feliz 2014

Nós não estávamos no avião da Malaysia Airlines que desapareceu, não estávamos no gol do Brasil no jogo dos 7 a 1 com a Alemanha, não tivemos nada a ver com o escândalo da Petrobras, não votamos no Aécio ou votamos mas não achamos que ele perdeu, não fomos aprisionados e decapitados pelo Estado Islâmico nem andamos perto de qualquer lugar bombardeado por drones.

Não estávamos em Israel sob ameaça de foguetes palestinos nem em Gaza quando Israel revidou, não fomos levados por nenhuma enxurrada ou soterrados por nenhum deslize de terra nem morremos afogados tentando chegar à Itália num barco de refugiados africanos nem fomos pegos na fronteira do México tentando entrar clandestinamente nos Estados Unidos, não morremos de overdose ou por qualquer outra razão, doença ou desatenção, e o ebola chegou perto de nós apenas no noticiário.

Quer dizer, de um ponto de vista puramente subjetivo, foi um bom ano.

Do jantar de Natal aqui em casa sobraram boas lembranças – e peru, claro. A trilha sonora deste ano foi o último disco da Maria Rita, de quem me declaro um devoto. Pelo que sei da sua vida, a Maria Rita nasceu e se criou nos Estados Unidos, o que torna sua opção preferencial pelo samba ainda mais admirável. Uma das faixas do seu novo CD é um sambão de Arlindo Cruz, Rogé e Arlindo Neto intitulado É Corpo, é Alma, é Religião, que começa assim: “Eu não nasci no samba, mas o samba nasceu em mim”.

Intencional ou não, a frase serve como uma autobiografia da cantora, que nasceu longe do samba, mas tinha o samba na alma, ou nos genes. Hoje, pode-se dizer, sem exagero ou idolatria, que ela faz parte de um triunvirato das nossas maiores sambistas, com a Alcione e a Beth Carvalho. E, além de tudo, é uma bela mulher. O nome do disco é Coração a Batucar. Compre.

Nossas trilhas sonoras familiares são ecléticas, Charles Aznavour e Michel Legrand fazem coro com Aldir Blanc e Moacyr Luz, Monica Salmaso faz dueto com Patricia Barber e quando menos se espera ouve-se o Miles fazendo fundo pro Chico. E preciso revelar um segredo que, espero, fique só entre os 17 leitores desta coluna.

Chega um ponto em que nada mais serve a não ser o Luis Miguel cantando Che sei tu. Preciso dançar um bolero do Luis Miguel com as minhas filhas. É um momento que exige uma certa solenidade, Mas as minhas filhas, não sei por que, sempre fogem na hora do Luis Miguel. Algo sobre não pagar mico. Vá entender.


Foi um bom ano. O Botafogo caiu, mas o Internacional chegou em terceiro no campeonato nacional, vai disputar a Libertadores de 2015 e, no fim do ano, poderá muito bem ser de novo campeão do mundo, se ainda houver mundo.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014


30 de dezembro de 2014 | N° 18028
FABRÍCIO CARPINEJAR

Fora do tempo

Não deixo o tempo perdoar em meu lugar. Não darei a ele os créditos de minhas dores.

Assumo minhas falhas e eu mesmo peço desculpa. Minha soberba é menor do que a minha inteligência, e posso garantir que é bem menor do que o meu coração. Ainda que seja um coração tolo, crédulo, facilmente influenciável.

Não tenho nenhum problema em perder uma briga, mas tenho todos os medos na hora de perder um amor.

Não permito ao tempo resolver o que não resolvi, ajeitar o que não ajeitei, concluir o que abandonei, sugerir o que silenciei, falar por mim.

Não assinarei uma procuração no cartório para que ele defina minha situação.

A franqueza tem que ser paga à vista. O tempo apenas acumula juros e distorções do nosso valor.

Não são os dias, os meses, os anos afastado daquele que amamos que nos trarão clareza. Até porque a saudade torna todos os dias iguais, não faz nenhum sentido aguardar o que já se sabe.

Há o hábito de sumir e desaparecer quando os dilemas aparecem na vida amorosa. Eu me comprometo até o fim. Se não tem saída, aproveito para ficar junto.

Sou adepto de permanecer na tempestade a dois – nenhum dilúvio é para sempre. Sou possessivo com as minhas lembranças, arrumo a bagunça que armei, explico minhas crises, não transfiro ao tempo o que é de minha responsabilidade.

Não considero justo o tempo dizer que eu estava certo ou errado. Isso é confortável, e não existe tranquilidade que substitua a sinceridade. Melhor errar assinando a página do que acertar anonimamente.

O tempo organiza, mas não define.

O tempo esfria, mas não cura.

O tempo estanca a hemorragia, mas não cicatriza.

O tempo elimina a carência, mas apaga o desejo.

O tempo acalma, mas não garante o entendimento.

O tempo adia as dúvidas, mas não consolida as certezas.

O tempo finge que avançamos, mas não saímos do lugar.

O tempo serve para diminuirmos a importância das ofensas, mas não resgata os elogios que não serão feitos.

O tempo é o senhor da razão, só que sempre escolho a fé, senhora da ação.

A fé cria seu próprio tempo. O tempo de amar é agora.



30 de dezembro de 2014 | N° 18028
ARTIGOS ZH

PASSAGENS PRECISAM DE CALMA

Tal diálogo me vem à baila quando percebo a angústia e o estresse de tanta gente neste período de festas. Um pouco das correrias, dos apressamentos e das bebedeiras e outras entorpecências da vida nestes dias. A paciência anda pouca. Nesse percurso, perdem-se vidas, transbordam violências e exemplos pouco defensáveis de valores humanos. Um segundo a mais atrás do semáforo é um calvário, cinco minutos numa fila um absurdo, uma ultrapassagem sofrida um acinte.

Nessa ânsia de gozar o prazer antes, e primeiro, podemos estar enterrando-o. Ou nos hospedando não em hotéis, mas em hospitais, ou ainda sendo hospedados na última morada de todos nós.

2015 entrará sorridente e desdentado como todo ano novo, mas poderíamos aguardar essa invenção que tanto nos organiza de um jeito mais interessante. De um jeito mais prazeroso e generoso. A solidariedade, o dar lugar, pode também gerar prazeres, que o digam os milhões de voluntários e militantes de causas sociais em todo o mundo.

Querer para outras pessoas também é inventar jeitos de felicidades duradouras e calmas.

Um minuto de adiamento do prazer pode ser como aquela fome abastecida para saborear melhor o momento do banquete, que vamos comendo antes com os olhos. Curtir os aromas do arredor não tem preço, mas contém fragrâncias, descritíveis e indescritíveis, pois nem tudo cabe nas telas e nos teclados dessa nossa ultramodernidade das telinhas touchscreen.

Ensinar paciência, tolerância e apreço ao outro, para nós, professores, pais, mães (adultos em geral), pode ser apenas o exercício de um ato, pois educação continua a ser centralmente, nas relações humanas, o exercício do exemplo. Normas legais temos muitas e mais e mais são editadas a cada ano, entre outras coisas porque não as observamos. A vida pode ser mais simples e pode ser prazerosa.


Coordenador do Projeto Protagonismo de Crianças e Adolescentes (Amencar), conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedica)

30 de dezembro de 2014 | N° 18028
DE FORA DA ÁREA | J. A. PINHEIRO MACHADO

SHAKESPEARE E O GRÊMIO

Desencanto, desesperança, falta de entusiasmo e sintomas de depressão profunda são os sentimentos que pairam como nuvem negra sobre a cabeça de cada um de nós, gremistas. Folheando as páginas da Divina Commedia compreendi a aflição de Dante, no Canto III, chegando ao Inferno.

Imaginei, escritas sobre a entrada da Arena, as “palavras de cor escura” do verso: Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate/ Queste parole di colore oscuro/ vid’io scritte al sommo d’una porta... [Deixe qualquer esperança você que chega/Essas palavras de cor escura/vi escritas no alto da porta].

Mas fechei imediatamente o Livro, com a forte suspeita que o maior de todos os poetas talvez fosse um colorado avant la lettre e fui às raízes da modernidade gremista, nos anos 1950, da primeira vez que pisei no Estádio Olímpico, com o bravo time do seu Rolla que não canso de escalar porque comandei um time de botão na infância com esta preciosa formação, ainda em WM: Germinaro; Airton e Bob; Figueiró, Elton e Ênio Rodrigues; Hercílio, Gessy, Juarez, Milton e Vi.

Eu tinha um botão “três camadas” no ataque, o “Gessy”, tão perigoso e tão goleador como o original. Mas será que era tudo isso mesmo? Em meio a essas dúvidas e recordações, abandonei Dante e me consolei com outro extraordinário italiano, Federico Fellini, que encorajava a fantasia da felicidade reinventada, mesmo num time de botão da infância: “Eu invento as minhas recordações! Não distingo mais as reais.

Minha mãe às vezes me diz: ‘Mas você nunca fugiu com o circo!’ ‘Você nunca esteve no colégio interno!’ A mim parece que tudo aconteceu de verdade! Para mim só é verdadeira aquela Rimini que sonhei, que inventei, que repensei, impregnada de saudade.”

É, Mestre Fellini, para mim só são verdadeiros aqueles times esquecidos, que nada temiam, que jogavam e venciam bravamente nas ilhas verdejantes da minha imaginação. E tomei coragem, lembrando de Nelson Mandela, quando prisioneiro em Robben. Na falta de tudo, quando morrer parecia uma hipótese, ele buscou socorro em Shakespeare: “Antes de morrer, morre muitas vezes o covarde; só uma vez o homem valoroso prova a morte.”


Era uma convicção recorrente de Shakespeare que cedeu outro estímulo à caderneta que ajudou Mandela a sobreviver ¾ e talvez nos ajude a enfrentar os primeiros embates de 2015 de cabeça erguida: “Devemos a Deus uma única morte”.

30 de dezembro de 2014 | N° 18028
DAVID COIMBRA

Compre ações da Petrobras

Sei exatamente o que faria com meu dinheiro neste momento, se tivesse algum: compraria ações da Petrobras.

Eis aí, inclusive, um conselho financeiro que dou a você, nababo leitor, e tão somente pelo preço do exemplar de Zero Hora: invista em ações da Petrobras e você ganhará muito dinheiro daqui a algum tempo.

Ou você acredita que a Petrobras vai à falência? Claro que não acredita, ninguém acredita, todos sabemos que a Petrobras vai se recuperar ali adiante. A Petrobras é a maior empresa da América do Sul, é robusta como um javali, é uma das vigas que sustentam a economia brasileira. Esse governo pode até cair; a Petrobras não cairá.

O Brasil democrático também não cairá, ainda que metade do governo faça solene entrada na Papuda, com o braço esquerdo erguido e o punho cerrado em desafio.

Assim como a Petrobras, a democracia brasileira pode ser abalada, não derrubada. Não mais. Esse tempo já passou. Ninguém nem leva a sério as rarefeitas manifestações pela volta dos militares ao poder. São tão anedóticas. São ridículas.

Mas observe como se luta contra a ditadura agora, nas franjas de 2015. Observe. A Avenida Castelo Branco mudou de nome. Um busto de bronze de Costa e Silva foi removido com pompa em Taquari. Faltou apenas o soar de trombetas para festejar a coragem do prefeito do PT, que enfim derrotou o ditador. E todos os dias alguém esbraveja contra os ditadores nos jornais, nas TVs, nas redes sociais.

Só que Costa e Silva e Castelo Branco morreram há mais de quatro décadas, todos os generais-ditadores morreram, aliás, e a democracia é exercida integralmente no país pelo menos desde a eleição de 89.

Então, qual é o verdadeiro objetivo dessa suposta luta contra uma ditadura que, felizmente, já faleceu e já se decompôs na sepultura?

O objetivo é desviar a discussão do que realmente importa. E o que realmente importa é que o Brasil está passando por um processo purgativo mais profundo do que foi a Operação Mãos Limpas, na Itália. O que realmente importa é que a varrição está só começando.

Não acredite nessas miragens. Não invista sobre essa capa que estão sacudindo na sua frente. Os militares golpistas são tão inofensivos quanto os agentes do comunismo cubano. Não é mais necessário lutar contra a ditadura. A ditadura se foi para sempre. Deve ser lembrada, deve ser estudada e dever ser lamentada. Combatida, não, porque não há o que combater.

O pretenso debate ideológico no Brasil não passa disso mesmo: de pretensão fátua, de cortina de fumaça, reles manobra diversionista. Vamos nos concentrar no que fará diferença para o Brasil, que se resume numa palavra:

Punição. Os corruptos têm de ser punidos. Roubou-se no governo Fernando Henrique? No governo Collor? No governo Sarney? Nas capitanias hereditárias?

Parece que sim. E daí? O roubo pregresso absolve o ladrão de hoje? Purifica-o? Torna-o menos ladrão?

Vamos fazer o seguinte: está provado que roubou, em qualquer tempo ou lugar, que seja punido. Sem ponderações. Sem relativização.

Só com a punição dos culpados alcançaremos a redenção. Porque a democracia brasileira vai seguir em frente e a Petrobras vai se recuperar. Mais limpos, ambos. Mais fortes.


É certo. Pode apostar seu dinheiro nisso.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014


29 de dezembro de 2014 | N° 18027
ARTIGO - LASIER MARTINS*

LAVAR O BRASIL

Asociedade nauseada vem assistindo a escândalos em série. Algo endêmico no país, que acabou culminando no maior de todos. As implicações da roubalheira na Petrobras, contudo, são mais sérias do que se possa imaginar. Os desdobramentos das investigações comprometem a credibilidade das instituições. A primeira resposta e a mais dura tem que ser dada pela chefe do Executivo.

Mesmo após a vitória nas eleições, Dilma Rousseff continua acossada não só pela economia cambaleante, mas também por conta das denúncias envolvendo a maior estatal do país, orgulho nacional, que se transformou em vergonha. Não basta repetir o mantra de que não tolera os “malfeitos”.

É pura figura de linguagem, com intuito de amenizar o que todos sabemos tratar-se de corrupção, um verdadeiro assalto. O governo federal precisa de pulso para conter os desmandos na Petrobras. Dilma não pode hesitar mais.

Do Judiciário, espera-se a mesma independência externa e interna que pautou o julgamento do mensalão e que vem norteando até aqui a atuação do juiz Sergio Moro, condutor exemplar do processo que implodiu a máquina de irrigar dinheiro de políticos corruptos de todas as correntes, boa parte de PT, PMDB e PP. Essas siglas precisam promover uma limpeza nos seus quadros.

Por fim, cabe ao Legislativo – onde estarei a partir de fevereiro, eleito senador com o voto dos gaúchos – trabalhar para extirpar o câncer. O número de parlamentares envolvidos pode superar três dezenas, uma bancada inteira sob suspeita de envolvimento na Operação Lava-Jato. O clima é de alta tensão nesta virada de ano.

A classe política estará sob os holofotes e a repercussão obviamente é negativa. Não basta apenas cassar o mandato dos envolvidos. É preciso encontrar soluções, e mais uma vez estamos diante do desafio de promover o que o Congresso vem se recusando nos últimos anos, a reforma política. Entre outros temas vitais, é o momento para discutir urgentemente um dos itens mais importantes dessa reforma: o financiamento das campanhas eleitorais. O Congresso não pode mais prolongar esse assunto, sob pena de estar sendo conivente. Afinal, boa parte do dinheiro desviado irrigou campanhas eleitorais em todo o país.

A desonestidade dos cartéis de empreiteiros ricos, dos intermediários espertos e dos políticos desonrados precisam do devido castigo e de remoção aos lugares apropriados aos grandes delinquentes. Suas ações comprometeram verbas vultosas que fazem falta à sociedade carente. O Brasil precisa de respeito.


*Senador eleito (PDT-RS - LASIER MARTINS

29 de dezembro de 2014 | N° 18027
DAVID COIMBRA

Xingado pelos leitores

Sócrates, o filósofo, dizia de si mesmo que era um moscardo. Ou seja: uma dessas moscas grandes, que estão sempre incomodando. Com isso, reconhecia ser um chato – por causa, basicamente, de seu método investigativo da alma humana e da sociedade, que ele chamava de “parto de ideias”.

Esse parto funcionava assim: Sócrates abordava um cidadão ateniense na rua e jogava-lhe no colo uma pergunta simples e conceitual. “O que é a sabedoria?” “De onde vem a coragem?” O interlocutor respondia e Sócrates contestava, ele era bom em contestar. O sujeito rebatia e ele contra-argumentava em cima de alguma falha do seu raciocínio.

E assim prosseguia com perguntas, respostas e novas perguntas, até chegar ao núcleo da questão ou, o que era mais usual, enfurecer o outro, que só queria ir ali ao mercado, comprar uma escrava nova que havia chegado da Trácia. Tenho fortes suspeitas de que Sócrates foi morto, mesmo, mesmo, devido a essa sua mania irritante.

Não quero me comparar a Sócrates, por amor de Deus!, mas aprecio esse método da busca da verdade pelo debate. Gosto do debate. Lanço uma ideia, vem alguém e a critica, pergunto a razão e vamos em frente. Se o outro tem um bom estoque de argumentos, pode muito bem me convencer de que estou errado, o que sói acontecer, porque sói acontecer de eu estar errado. Mas, lamentavelmente, as pessoas não debatem. Não ponderam sobre o que o outro está dizendo. Não argumentam. Elas logo atacam o debatedor, acusam-no de ser isso ou, o que é pior, aquilo e, aí, em vez de luzes, o que sobrevém são trevas.

Sei qual é a razão disso. É porque as pessoas empunham bandeiras. Não é possível compreender o que alguém está dizendo se você está tremulando uma bandeira. Por esse motivo, não me filio a movimento algum, por justo que seja. O movimento pode ter a minha simpatia, jamais a minha adesão, porque preciso ter espaço para pensar. É uma deficiência minha, essa de ter tantas dúvidas.

Exatamente devido à minha ignorância, queria debater com pessoas mais preparadas do que eu. O problema é que essas pessoas mais preparadas são também as mais suscetíveis à contestação. Elas ficam fulas à primeira crítica e já me chamam de tudo o que é ruim, dizem até que eu era mau zagueiro. Triste. Não sou nem jamais serei um Sócrates, mas suspeito de que eu seja um moscardo.

Teço todo esse arrazoado para contar que muitos leitores me criticaram por ter defendido a legalização do aborto, na coluna de sexta-feira passada. Mas foram críticas educadas, algumas compassivas. Portanto, por amor ao debate e na busca da luz, é para esses que escrevo agora. Escrevo para você que é contra o aborto.

Acontece que você não está sozinho. Todas as pessoas são contra o aborto. Quem seria a favor? Que mulher gostaria de fazer um aborto?

O aborto não é como a droga. A droga, em princípio, procura-a quem quer. A droga é usada por prazer ou por curiosidade e, depois, pelo vício. A mulher que faz o aborto não o faz porque deseja. Faz porque considera necessário.

Não é agradável fazer um aborto, não é bom, não acrescenta nada ao status social de quem faz, não lhe melhora a imagem, não o torna mais popular.

O que quero dizer, com isso, é que a legalização do aborto não vai fazer com que ocorram mais abortos.

Já a ilegalidade não diminui o número de abortos. Submete-se a aborto quem achar que precisa, e até com certa facilidade. O problema é que, devido à ilegalidade, as milhares de mulheres que passam por aborto todos os anos têm de entregar-se a médicos clandestinos, quando não curandeiros, ou então, o que é horrendo, elas mesmas se ferem com objetos, como agulhas de tricô.


Então, a questão do aborto ultrapassa quaisquer debates religiosos ou morais. É uma questão de saúde pública. De sobrevivência e de dignidade de multidões de mulheres. Se você é contra o aborto, deve concordar com sua legalização. Todos devem concordar. Porque, afinal, todos são contra o aborto.

29 de dezembro de 2014 | N° 18027
MOISES MENDES | MOISÉS MENDES

As juízas

Eu queria ver um encontro das juízas Carine Labres e Lizandra Passos. Carine envolveu-se na controvérsia nacional da cerimônia coletiva de casamento com a participação de gays, no CTG de Livramento.

Carine não disse: sou magistrada, cumpro as leis e apenas observo de longe o que se passa. Não. A juíza defendeu o evento pelo seu significado, enfrentou o conservadorismo e o moralismo de superfície e fez valer uma obviedade também do Direito: a neutralidade é a mais antiga conversa fiada da humanidade.

Sob censura dos “neutros”, Carine participou depois da Parada Gay em Porto Alegre. Embarcou num carro alegórico ao lado de Solange Ramires, 24 anos, e Sabriny Benites, de 26, as moças que se casaram em Livramento. Os “neutros” acharam estranho. Se Carine estivesse no carro de Baco, na Festa da Uva, tudo bem. Mas num carro de gays?

A outra juíza, Lizandra Passos, também se envolveu em controvérsia nacional ao rejeitar no fim de semana o pedido de prisão preventiva de Leonam dos Santos Franco. O homem dirigia o carro que destruiu uma moto, em Capão, matando Manoela da Silva Teixeira, de 19 anos, e deixando Francieli da Silva Mello, de 22, em estado grave.

Manoela e Francieli também formavam um casal. Leonan estava bêbado, em alta velocidade e na contramão. A juíza negou o pedido de prisão porque não havia recebido o atestado de óbito de Manoela. Policiais e testemunhas disseram que a moça estava morta, mas isso não importava. A juíza queria o papel.

As duas juízas, Carine e Lizandra, podem dizer que cumpriram o que a lei determina. Carine foi acusada de ser proativa demais, como se existissem juízes absolutamente alheios a tudo e a todos.

A “neutralidade” conservadora só preserva interesses e costumes nem sempre explicitados. Carine usou a lei para fazer valer os direitos de quem se dispõe a enfrentar o atraso para ser feliz.

No caso de Capão, as moças da moto eram a expressão do avanço civilizatório que Carine vem ajudando a consagrar. Um motorista bêbado acabou com os sonhos de Manoela e Francieli.


O atropelador é o atraso posto em liberdade por falta de um atestado. A juíza Lizandra tinha à mão uma lei que o favoreceu. Há leis e leis. E há juízas e juízas.

29 de dezembro de 2014 | N° 18027
L. F. VERISSIMO

Especulações

Sempre se especulou sobre por que o físico alemão Werner Heisenberg foi conversar com o físico dinamarquês Niels Bohr em Copenhague, em setembro de 1941. Heisenberg dirigia o programa nuclear da Alemanha e teria ido informar Bohr sobre o progresso da sua pesquisa, pedir sua ajuda, sondar o amigo sobre o que este sabia das pesquisas sendo realizadas nos Estados Unidos depois da chegada de Enrico Fermi, ou – a especulação mais intrigante – levado a Bohr a proposta de um compromisso, a ser assumido por cientistas dos dois lados, de não construir a bomba ou de sabotar a sua construção?

A simples especulação de que esta proposta teria sido feita trazia algumas implicações curiosas. Uma, a de que o próprio Heisenberg estaria deliberadamente atrasando o programa nuclear dos nazistas. Outra, a de que, mesmo se soubessem como fazê-la, os cientistas alemães não teriam construído a bomba. Outra, a de que o apelo de Heisenberg seria a valores humanísticos acima de lealdades passageiras a pátrias e regimes, ou a uma sensibilidade comum europeia, com a esperança de que ela tivesse sobrevivido na América.

Parte da oportunidade que a América dava à ciência para levar a pesquisa nuclear à sua conclusão lógica e prática era livrá-la de escrúpulos e culpa, ou seja, livrá-la da hesitação europeia. Heisenberg estaria propondo uma conspiração da consciência, contra o pragmatismo americano e contra a volúpia histórica da ciência de perseguir toda descoberta até o seu fim, mesmo que o fim fosse o terror, no caso o terror nuclear.

Documentos recém publicados mostram que Heisenberg não propôs nada parecido a Bohr, que Bohr só guardou da visita sua preocupação com a possibilidade de os nazistas terem a bomba primeiro e a certeza consoladora de que Heisenberg e seu grupo não estavam nem perto de conseguir isso.

Na verdade, o que atrasou o programa nuclear alemão não foi a consciência, mas o preconceito burro: os nazistas achavam que física teórica era “coisa de judeu” e custaram a entender todas as implicações do átomo partido. Da mesma forma, foram as novas leis raciais italianas, inspiradas pelas nazistas, que forçaram a ida de Enrico Fermi, cuja mulher era judia, para os Estados Unidos e a emigração da maioria da sua equipe.

A ideia de que Heisenberg representava uma resistência do espírito europeu ao horror da bomba em contraste com o pragmatismo americano, mesmo falsa, permanece uma metáfora forte. Heisenberg teria sido o gênio nuclear que não cruzou o Atlântico, o antiexilado, o que não aproveitou a oportunidade oferecida pela América, da ciência sem remorsos, e fracassou.

Sem o vício do antissemitismo, os alemães teriam feito a bomba antes? Como todas as outras especulações, esta continuará para sempre uma especulação. De qualquer jeito, quem ficou com a bomba não foi o Hitler, foi o Truman.


Em 2015 a explosão de bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki fará 70 anos.

sábado, 27 de dezembro de 2014


28 de dezembro de 2014 | N° 18026
MARTHA MEDEIROS

Espero que 2015 não seja 100%

Que tudo que eu quero que aconteça não aconteça exatamente como imagino. Que eu consiga realizar meus projetos, mas que depare com pequenas dificuldades para continuar duvidando de mim mesma. Que me surjam ideias novas para abastecer minhas colunas, e também muitos dias de branco na cabeça para eu saber que meu cérebro nem sempre obedece aos meus comandos. Que meu trabalho atinja uma eficiência de 70% e me reste 30% de desacertos para não perder a humildade.

Uma amiga me desejou uma paixão que me tire o tino, me faça cambalear pela sala, que me deixe maluca, abobalhada, sonhadora, acreditando em fadas e duendes. Francamente, isso se deseja aos inimigos. Troco essa epifania por um amor que atinja a meta de 80%, o que já é uma megassena. Que seja vibrante, sim, mas que nos mantenha com os pés no chão, conscientes de que o paraíso emocional não existe, mas pode-se chegar bem perto e será o bastante.

Que haja uma porcentagem mínima de ciúme e desacordos, para que a segurança não seja total e se queira continuar junto dia após dia, a fim de alcançar o inalcançável. Que sobre 20% de solidão, aquela solidão necessária mesmo quando estamos apaixonados, aquela solidão que fortifica a alma e que serve também, entre outras coisas, para valorizar nossos vínculos.

Que minhas amigas estejam por perto, mas não 100%, porque gosto de ter novidades para contar quando nos encontramos. Que minhas filhas estejam por perto, mas não 100%, não porque eu não queira, mas porque eu espero que elas não queiram, ou não seriam garotas antenadas e saudáveis – que jovem adulto não sonha em aventurar-se em seus próprios caminhos? Que minha família de origem – pais, irmão, cunhada, sobrinhos – esteja por perto, mas não 100%, para que continuemos a viver em harmonia (mas vou continuar falando contigo todos os dias, mãe, prometo).

Saúde de atleta? Também não. Em relação à saúde corporal, fecho negócio em 95% pra mim e 5% para o oponente, a serem distribuídos entre espirros (pra lembrar que o corpo se queixa), febrículas (pela transgressão de cair de cama no meio da tarde) e dor de cabeça na manhã seguinte a alguma farra. E deu. 5% de vulnerabilidade são suficientes para me manter alerta, fazer exercícios constantes e abandonar o vinho depois do segundo cálice. Ou do terceiro.

Quanto à saúde mental, fico com 50% sem achar que é pouco. Nem pensar em 100% de certezas, teorias, eloquências. Nem pensar – mesmo. Menos pensar e mais agir, mais impulsos, mais riscos. Estou topando dividir minha sensatez com especulações, atrevimentos e algumas fantasias ordinárias.


A vida não é impecável, por que eu seria? Em 2015, não almejo o absoluto, o total, o 100% concluído. Que sobre espaço a preencher para me manter em movimento. Feliz ano novo e incompleto pra você também.

28 de dezembro de 2014 | N° 18026
FABRÍCIO CARPINEJAR

O sofrimento não é exclusividade de ninguém

Acabamos nos envergonhando por pensar que os outros não têm problemas.

Esquecemos que a vida é generosa para todos os lados nas dívidas e nas dúvidas.

Ninguém escapa do conflito, do trabalho e das adversidades.

O sofrimento tem o cacoete de fingir exclusividade, mas ele também mora com o nosso vizinho, com o nosso colega de trabalho, com a vendedora do armazém da esquina, com o governador eleito.

Desde que me separei, eu fugia do ourives das alianças.

Eu havia pedido que desenhasse o par de joias imitando o encaixe do rolamento de um navio: pinos de um se encaixando nos furos do outro.

Os amigos me aconselharam a encomendar naquela loja pois ele, além de um grande artista, dava sorte para o casamento: seus clientes raramente se divorciavam.

Não queria que ele descobrisse que não ajudei seu aproveitamento, que puxei suas estatísticas para baixo, que não me tornei um case de seu sucesso.

Buscava me livrar do encontro à queima-roupa e da única pergunta que nos unia:

– Como vai o lindo casal?

Meu medo é que ele, ao apertar minha mão, notasse a ausência da aliança.

Eu me encabulava por não corresponder a suas expectativas, como se ele fosse um padrinho oculto, um cupido adulto, um fiador do amor.

Tinha duas missões em Porto Alegre: não frequentar os mesmos lugares da ex e do criador das alianças.

O que me facilitava era que ele contava com dois metros de altura, um farol de alcance imediato na multidão.

Via o artesão num restaurante do shopping Praia de Belas e dobrava em direção ao toalete.

Via o artesão num bar da Cidade Baixa e me camuflava na pista de dança.

Via o artesão caminhando na 24 de Outubro e atravessava a rua.

Acho que ele reparou que desaparecia em todos os lugares. Homem não é discreto quando tem medo.

Eu escolhia sempre um atalho para evitar cumprimentá-lo. Ele se transformou num SPC matrimonial, num credor imaginário.

Até que, sentado no café Dometila, na Praça Maurício Cardoso, de costas para a calçada, sinto um braço fechar meus olhos e uma voz brincar:

– Adivinha quem é?

Enrubesci. A voz com sotaque alemão era inconfundível. Menti que desconhecia com a esperança de decifrar rapidamente a equação do túnel do tempo e do buraco da minhoca.

– Sou eu – ele riu. Daí, me encarando sem perdão, lançou a questão:

– Me conta, como vai o casal? Baixei a cabeça e assumi: – Desculpe, nos separamos.

Ele acusou o golpe, puxou a cadeira e sentou perto de mim:

– Eu entendo, também me separei. Que tal trocar o café por algo mais forte?


– Garçom?

28 de dezembro de 2014 | N° 18026
ANTONIO PRATA

A fuga do cativeiro egípcio

“Pequeno pânico” talvez soe incongruente, algo como “gigantinho” ou “leve furacão”, mas foi exatamente o que senti ao vê-lo próximo à esteira de bagagens, acenando. Não, não somos inimigos, longe disso. Namoramos duas primas, lá por 96, dividimos a mesa em Pessachs, Rosh Hashanahs e Yom Kippurs, na casa da avó delas.

Os dois góis – ele cristão e estudante de engenharia, eu ateu e aspirante a escritor –, procurávamos terrenos comuns para escorar nosso deslocamento: eu lhe narrava a ideia de um conto, ele dissertava sobre as maravilhas do concreto armado e, assim, ficava mais fácil equilibrar as adolescências sob aqueles quipás. Dezoito anos e 11 horas de viagem depois, contudo, às seis da manhã...

Fui empurrando o carrinho e arrastando meu pequeno pânico, pensando que seria tão mais simples se, num acordo de cavalheiros, nos ignorássemos mutuamente. Bastava monitorar o posicionamento do outro com a visão periférica e ficar de lado ou de costas, conforme a situação.

Já não namorávamos as primas, não nos sentíamos perdidos entre contraparentes e rituais milenares, éramos apenas dois homens cansados, querendo ir logo pra casa. Agora, porém, era tarde: ele havia feito contato visual e estávamos irremediavelmente atados até que chegassem as malas, condenados a uma escavação arqueológica em busca de gefilte fishes, vergalhões enferrujados e contos nunca terminados.

Eu dei oi, apertamos as mãos. A conversa começou protocolar, “Poxa, quanto tempo”, “Quinze anos? Mais?!?”, “Tá vindo de onde?”. Aos poucos, contudo, o papo engrenou: mesmo cansado, às seis da manhã, ele investia alguma energia pra que a coisa fluísse – energia que, momentos antes, eu preferia gastar metendo o nariz no iPhone. Das viagens fomos pras primas (uma se casou com um austríaco, a outra faz massagem ayurvédica), das primas pros jantares, dos jantares pras profissões. Eu falei do meu último livro, perguntei o que ele fazia, me contou que “desentortava prédios”.

Eu ri, curioso, ele disse que era sério, esses prédios que afundam, como os de Santos, são mais comuns do que se imagina. Então, enquanto à nossa volta olhos sonados amaldiçoavam as malas alheias, deslizando como leões-marinhos pela esteira, eu ouvi atento o relato sobre tal milagre da engenharia: cavam um buraco embaixo do prédio, constroem uma espécie de piscina, enchem de água e congelam com nitrogênio. ”A água, como você sabe, se expande ao congelar” – eu não sabia – “o gelo empurra o prédio pra cima, aí é só escorar com uns pilares.”


Quando nos despedimos, o pequeno pânico havia dado lugar a uma pequena culpa e a uma sincera admiração. Ali estava um sujeito generoso, não um sujeito que via o mundo sob a ótica do cálculo e do interesse. Ora, se na década de 90 havíamos concluído a fuga do Egito, mais de uma vez, tranquilos, o mínimo que deveríamos fazer ao nos encontrarmos no aeroporto, no mercado ou no Azerbaijão era apertar as mãos e investir algum esforço para sermos agradáveis. Me senti uma besta. Paciência: uns nascem para desentortar edifícios, outros para embrulhar o remorso numa folha de jornal.

28 de dezembro de 2014 | N° 18026
PAULO SANT’ANA

O céu de Punta

Punta del Este é um paraíso encravado no inferno do Uruguai.

Punta del Este foi erguida pelos argentinos para gozar as delícias da praia, a delicadeza do trânsito e, principalmente, a vantagem enorme de não conviver com os uruguaios. Há gente de todo o mundo em Punta, menos uruguaios. Por isso, os argentinos se refugiaram lá.

Mas, aos poucos, os argentinos estão cedendo terreno em Punta del Este para os brasileiros, em breve haverá mais brasileiros em Punta do que argentinos.

É que as sucessivas crises financeiras que assolaram a Argentina pós-Perón foram empobrecendo os portenhos e eles passaram a vender suas casas e apartamentos em Punta del Este.

Não vou a Punta del Este por sua beleza natural e arquitetônica, que é indiscutível. Vou por dois motivos: os cassinos e os pêssegos.

São os pêssegos mais deliciosos do mundo, os de Punta, mais doces que as tâmaras do Líbano e mais suculentos que as laranjas de Taquari.

Pena que os pêssegos de Punta não dão nas quatro estações. Mas na única estação que vicejam já me bastam para comer centenas deles em apenas 60 dias.

Não é preciso dizer que tanto o Oceano Atlântico quanto o Rio da Prata, que banham as duas margens da península em Punta, têm águas geladas, nem sei como alguns turistas se atrevem a mergulhar nelas.

Se Punta del Este tivesse as águas das suas praias quentes como as de Jurerê, seria a cidade mais frequentada do mundo.

Mas a água é gelada, nem pinguim conviveria com ela.

Mas as ruas e avenidas de Punta são limpíssimas, arejadas por árvores inúmeras e têm um trânsito pacífico e convidativo como não há igual em nenhuma cidade do planeta.

Eu nunca vi um acidente de trânsito em Punta del Este. Dizem que já houve, mas eu nunca vi. É de admirar isso, afinal é estreita a península, mas acontece que o trânsito só é intenso no verão. No inverno, parece trânsito destinado exclusivamente aos pedestres, tão suavemente se comportam os motoristas em Punta.

Finalmente, é incrível, mas não há sequer um negro em Punta del Este. A 150 quilômetros de Punta, em Montevidéu, há milhares de negros.

Mas em Punta nenhum empregado, nenhuma empregada doméstica negra, nem camareiras de hotel.

Foi feita em Punta uma segregação racial pacífica e não violenta. Há mais negros na Dinamarca e na Noruega do que em Punta del Este.

Ou melhor, não há sequer um só negro ou uma só negra em Punta.

MEUS LEITORES

- Sobre “Olá, estou aqui agora”,

publicada em 21/12/2014

Grande Sant’Ana, agora que tu estás escrevendo só aos domingos, aproveita que tens mais tempo livre e coloca um pouco de juízo na cabeça dos dirigentes do Grêmio. Precisamos de um bom time ano que vem para a Copa do Brasil. Boa sorte nesta nova empreitada. Abraço.

VAGNER RODRIGUES PAGANO

Resposta Eu ando muito desiludido com o Grêmio, Vagner. Mas a esperança é a última que morre. Aliás, a última não: a penúltima.

- Sobre “A mudança”, publicada em 18/12/2014

Prezado

Todos os gaúchos, quando pegam ZH, visualizam a capa do jornal e depois correm para ler a vossa coluna, pois é um hábito de todos os leitores de ZH a coluna escrita por Pablo. Diz muito com o pensar e gostar do povo gaúcho. Por isso tudo, teremos que reaprender a ler ZH novamente. Forte abraço.

JORGE LUIZ GOUVEIA EHLERS

Resposta Eu te aconselho uma coisa muito simples, Jorge: compra ZH só nos domingos, que não vais te arrepender.

O MELHOR DE MIM

(Pensamentos extraídos do meu arquivo de colunas)

Só há razão de viver no entusiasmo. E o entusiasmo nasce da coragem.

A vida, em todo dia que se acorda de manhã, tem que nos apanhar mobilizados para a felicidade.

É muito importante o que o homem faz, mas eu daria um doce para saber o que ele pensa. E, entre o que faz e pensa, quase sempre tropeça num abismo.


O coração não sente ciúme. O coração só ama. Quem sente ciúme é o cérebro. Por isso se diz que o ciúme é coisa da cabeça da gente.