terça-feira, 14 de junho de 2011



14 de junho de 2011 | N° 16729
FABRÍCIO CARPINEJAR


Dormindo com o inimigo

Puxar o lençol é motivo de discussão. Puxar o lençol e o edredom é motivo de crise. Puxar o lençol, o edredom e roubar o travesseiro são motivos de divórcio.

Coisa séria a disputa pelas cobertas de noite, um perigoso jiu-jítsu de pais de família, uma luta livre de pijama.

Não há bruxismo mais grave do que das mãos e dos cotovelos defendendo o território e guardando o lugar aquecido.

A reforma agrária talvez somente seja possível depois da partilha igualitária da roupa de cama pelos casais.

Mari se deitava e logo encarava seu marido como um inimigo. Caco tomava pílulas de cafeína para se manter acordado e ser o último a fechar os olhos, desconfiado das armadilhas de sua esposa.

Não mais relaxavam, não se abraçavam, não pediam conchinha, não encostavam os pés. Adormecer era o mesmo que ser enganado. Caco temia que Mari virasse uma múmia, a ponto de confiná-lo na Cidade dos Mortos. Mari receava que Caco se convertesse em lobisomem, tomando seu conforto e espaço.

Eles se odiavam silenciosamente de madrugada. Algo inconsciente, imperceptível no detector de metais da terapia. Não iriam mesmo conseguir controlar a vontade de passar o outro para trás. E ninguém realmente consegue: uma das glórias do amor é despertar regiamente enrolado enquanto nosso par treme de frio no canto. Representa uma cena de insuperável cinismo. Muitos não freiam o sadismo e culpam a vítima: “Por que você não me avisou?”.

Para salvar o casamento e evitar a saída litigiosa de quartos separados, os dois optaram pela alternativa diplomática de individualizar o lençol e o edredom. Cada um compraria o seu enxoval. Terminaria assim a injustiça noturna, o MST, o colchão improdutivo.

Na primeira noite juntos após a medida, saíram do banho direto para a cama com uma volúpia inédita, um contentamento infantil.

Coroando o entendimento, ainda tiveram a sorte de contar com uma madrugada bem fria; os termômetros em Porto Alegre flertavam com o negativo.

O que não imaginavam era a ação impulsiva da empregada, que cruzou os lençóis, indiferente à sutil divisão dos bens.

– Mari, quer que levante para separar as cobertas?

– Não, Caco, deixa assim, senão vai fazer vento.

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