sexta-feira, 24 de junho de 2011



24 de junho de 2011 | N° 16739
DAVID COIMBRA


Para Martha Medeiros

Existe um mito no Brasil: o de que os guerrilheiros de esquerda lutavam contra a ditadura. Nunca lutaram contra a ditadura; lutaram contra o regime. Se tivessem vencido, implantariam outra ditadura. Até porque seria impossível que implantassem um regime democrático, mesmo que quisessem: quem vence pela força precisa se manter pela força, e a democracia, para se consolidar, tem de prescindir da força.

A democracia é macia. A democracia se solidifica lentamente, através de seu próprio processo de uso. A democracia, ao se formar, educa e, educando, se forma.

O Brasil carece também desse tipo de educação cívica, não apenas da educação formal.

Dias atrás, a Martha Medeiros manifestou aqui mesmo, neste espaço, nesta página, a sua perplexidade ao esbarrar na notícia de que médicos e cientistas tinham sido flagrados em corrupção. Martha se disse desiludida: então até as pessoas de alto nível de educação formal são suscetíveis à corrupção? É que só a educação formal não basta, Martha. O brasileiro precisa conviver mais com a democracia para entender como ela funciona.

O brasileiro aprendeu que pode se manifestar e exigir seus direitos, mas não aprendeu que há regras para fazer as manifestações. Um pleito justo não confere a ninguém licença para fechar ruas, bloquear estradas, invadir prédios públicos ou depredar ônibus. É contra a lei, mas, para o brasileiro, a lei está fora dele e acima dele, a lei não vem dele.

O brasileiro aprendeu que existe liberdade de pensamento, mas, quando alguém defende um pensamento contrário ao seu, ele não ataca o argumento; ataca quem argumentou. Quem escreve em jornal ou emite sua opinião em rádio e TV é vítima diária desse tipo de exercício autoritário. A Martha sabe disso: os leitores, se não concordam com algo que ela escreveu, não falam do que ela escreveu: falam DELA.

A seiva antidemocrática que corre nas artérias do brasileiro é tão densa, que, nesses casos, a justificativa de quem agride o colunista ou o comentarista é a mesma que embasa todas as censuras que um dia foram instauradas no mundo: “Você é um formador de opinião; logo, tem de ter cuidado quando a emite”.

O que quer dizer isso? Que a opinião tem de ser controlada. Tem de passar por uma triagem de, digamos, “bom senso”. Mas de quem é esse bom senso? Quem fará o controle? Quem dirá que opinião é boa e que opinião é ruim?

O brasileiro assimilou só um lado da democracia. O lado que lhe interessa. O da defesa dos seus direitos, da sua opinião e das suas prerrogativas. Para o brasileiro, o Estado existe para servi-lo. É por isso que o esporte nacional, no Brasil, é a crítica aos “políticos”. Os políticos são ladrões, os políticos são corruptos, os políticos só pensam em seus interesses.

Na verdade, trata-se de uma autocrítica. Os políticos saem dos intestinos do povo e representam o povo. Mais: os políticos, como a lei, não estão acima do povo: os políticos SÃO o povo. Nós somos ladrões, corruptos e autoritários, Martha. Será preciso mais de uma geração para aprender a ser diferente.

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