sábado, 18 de junho de 2011



19 de junho de 2011 | N° 16734
DAVID COIMBRA


Sanduíche de mortadela

Ela falou em voz baixa, porém perfeitamente audível. Não era uma voz fina, de mulherzinha. Era uma voz decidida, que saiu das profundezas do esôfago. O jeito como falou e o que falou se tornaram acontecimentos inesquecíveis para ele.

Estava parada em frente ao balcão da cantina do clube, olhando para o atendente. Usava calças jeans justas que realçavam as formas de suas pernas compridas e suas nádegas redondas como a curva da baía de Copacabana.

Era a falsa magra clássica, uma daquelas mulheres que, quando tiram a roupa, o Brasil se levanta. Os cabelos castanhos desabavam-lhe ombros abaixo, terminando em caracóis macios. O pescoço de garça lhe dava uma aragem de imperatriz. Ele não sabia se ela havia reparado em sua presença, mas isso não importava. O que importava era a forma como ela agia e, sobretudo, o que ela disse. Que foi:

– Um sanduíche de mortadela, por favor.

Um sanduíche de mortadela. Nada mais singelo, nada mais puro, nada mais chão do que um sanduíche de mortadela. E, no entanto, uma mulher sofisticada como aquela era capaz de chegar ao balcão da cantina e pedir sem nenhum pejo:

– Um sanduíche de mortadela, por favor.

Ele mesmo não comia mortadela havia muito, muito tempo. A mortadela estava fora de moda. Era até vergonhoso comer mortadela. Uma mulher comendo mortadela, então, era impensável. A última mulher que ele lembrava ter visto comendo mortadela era sua avó, que saudade da sua avozinha.

Mas sua avó era uma mulher do começo do século passado, e as de hoje não, não, as mulheres de hoje querem distância da mortadela. No máximo elas trincham um peitinho de peru, um chester, um queijinho de Minas. Talvez até caçoem de quem come mortadela. Nem mesmo os homens de hoje comem mortadela.

Comem presunto magro, comem salame italiano. A mortadela era discriminada. Por isso, ele jamais teria coragem de pedir um sanduíche de mortadela em público, sobretudo na presença de uma mulher como aquela. Mas ela não, ah, não mesmo. Linda daquele jeito e chegava a uma cantina de um clube e com o queixo erguido e a voz firme solicitava:

– Um sanduíche de mortadela, por favor.

Ele ficou imaginando a rodela de mortadela sendo mordida pelos alvíssimos dentes daquela beldade, depois imaginou a mortadela descendo-lhe suavemente até o estômago, sendo digerida e, por fim, espalhando-se em forma de energia por todo aquele corpo divino. Graças a uma parcela da energia gerada pela mortadela, ela andava sobre suas duas pernas fortes e torneadas, movia-se com toda a sua elegância de corça e tinha força para chegar a um balcão de bar e ciciar:

– Um sanduíche de mortadela, por favor.

Naquela mesma noite, ele foi ao supermercado e comprou uma grande e rosada mortadela. Voltou para casa ansioso, preparou um café, sentou-se à mesa com a xícara fumegante e colocou a mortadela a sua frente. Ficou olhando para aquela mortadela por muito tempo, pensando. Era uma mortadela linda, possante, cheia de viço.

Em seguida, tomou de uma faca serrilhada e, com vigor e determinação, montou um sanduíche de mortadela. Enquanto comia e fazia mmmmmmm, pensava que era isso, exatamente isso: o segredo está na simplicidade. As melhores coisas da vida são as mais simples, as coisas que sabemos desde sempre, que aprendemos quando crianças, que se instauram em nossa alma quando ainda não fomos corrompidos pelo preconceito, pelo orgulho e pela presunção.

Aquilo era uma mensagem, algo que Forças Superiores queriam lhe dizer. Ele, como técnico de futebol que era, só tinha de interpretar o sentido da experiência transcendental e adaptá-lo a sua própria realidade. Chegou à conclusão óbvia: um time tem que jogar com um centromédio fixo na frente da área. Um centromédio ortodoxo, desses que sempre existiram, funcionais, bons e simples como... uma mortadela.

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