segunda-feira, 18 de julho de 2022


18 DE JULHO DE 2022
CAPA

O melhor filme noir nunca feito

Ed Brubaker e Sean Phillips ambientam na Hollywood de 1948 a magistral HQ "Fade Out", lançada recentemente no Brasil

Ambientado na Hollywood de 1948, Fade Out é o melhor filme noir que nunca foi feito. Trata-se de uma história em quadrinhos, escrita por Ed Brubaker, desenhada por Sean Phillips, colorizada por Elizabeth Breitweiser e publicada no Brasil pela editora Mino (tradução de Dandara Palankoff, 400 páginas, R$ 132,90).

Filho do romancista e contista Stephen King, o escritor Joe Hill já comparou o estadunidense Brubaker, 55 anos, e o inglês Phillips, 57, à dupla formada entre o diretor Martin Scorsese e o ator Robert De Niro: "São mestres ímpares de um certo tipo de narrativa". Faz sentido.

Como De Niro em relação a Scorsese, Phillips é quem dá corpo às ideias de Brubaker. A exemplo do cineasta e do astro de Taxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995) e O Irlandês (2019), os quadrinistas especializaram-se em tramas não raro violentas sobre danação, com personagens à margem da lei ou com moral duvidosa - e que, reforçando a ligação com o cinema, são apresentados previamente no que os autores chamam de "trailer de filme no papel" (o de Fade Out está incluído nas mais de 50 páginas de material extra, que trazem ainda os bastidores do processo de criação, ilustrações e dois ensaios do blogueiro Devin Faraci: um sobre a "solitária morte" da atriz Peg Entwistle, outro sobre a participação de James Stewart, o protagonista do clássico A Felicidade Não se Compra (1946), na Segunda Guerra Mundial).

Brubaker e Phillips também são parceiros de longa data: se Scorsese já dirigiu De Niro em 10 filmes desde Caminhos Perigosos (1973), o roteirista e o artista já lançaram duas dezenas de obras desde Batman: Gotham Noir (2001). Quase todas estão sendo trazidas ao Brasil pela Mino, que já editou Pulp, Meus Heróis Eram Todos Viciados e a série Matar ou Morrer, além de já ter iniciado a coleção Criminal.

Publicada primeiramente em 12 gibis (as lindas capas originais também estão nos extras), entre agosto de 2014 e janeiro de 2016, Fade Out venceu a categoria de melhor série limitada no Eisner, o principal prêmio dos quadrinhos nos EUA. A inspiração inicial de Brubaker foram as lembranças compartilhadas por seu tio, John Paxton, roteirista indicado ao Oscar por Rancor (1947), e a esposa dele, Sarah Jane, que trabalhou como relações públicas do estúdio 20th Century Fox. O roteirista também leu livros sobre a Hollywood dos anos 1940 e, claro, durante décadas se expôs à literatura noir - Raymond Chandler, Dashiell Hammett, James M. Cain... - e ao cinema desse subgênero policial, popularizado justamente àquela época.

Com títulos indicativos, filmes como Alma Torturada (1942), À Sombra de uma Dúvida (1943) e Beijo da Morte (1947) traduziam angústias da população estadunidense, com o sentimento de segurança e estabilidade em xeques por conta do conflito mundial. Assim disse o pesquisador Bertrand de Souza Lira, autor de Cinema Noir: A Sombra como Experiência Estética e Narrativa (Editora UFPB, 2015): "Com seus valores abalados, a sociedade absorveu facilmente a concepção niilista do homem, com temas sombrios, como alienação, corrupção, desilusão e neurose, alimentando os argumentos noir". Em cenários pessimistas e fatalistas, quase sempre noturnos ou soturnos, a sobrevivência demandava personagens de ética e moral ambivalentes.

Submundo

Com a diferença fundamental de serem coloridos, em vez do característico preto e branco, esses personagens e esses cenários abundam em Fade Out, contrastando com a imagem glamorosa e reluzente sugerida pela chamada Fábrica dos Sonhos. Brubaker e Phillips preferem examinar as ilusões, as trapaças e os pesadelos.

O protagonista é o roteirista Charlie Parish. Outrora um concorrente ao Oscar, agora ele vive assombrado pela experiência na Segunda Guerra. Mal consegue escrever uma linha sem a ajuda do colega de ofício e amigo de copo Gil Mason, impedido de trabalhar oficialmente por ter entrado na famigerada Lista Negra dos artistas considerados comunistas.

As coisas se agravam quando Charlie acorda de um apagão em uma banheira, após uma festa de arromba, e percebe que está na casa da atriz Valeria Sommers, uma loira platinada destinada a ser a próxima Veronica Lake, estrela de A Dália Azul (1946). No instante seguinte, ele depara com o corpo de Sommers. A partir daí, passa a vasculhar sua própria memória, não muito confiável, prejudicada por blecautes etílicos, e a interagir com outros tipos hollywoodianos, sejam reais - como o ator Clark Gable -, sejam baseados em celebridades ou arquétipos.

Os quase 20 personagens são identificados em uma galeria que abre Fade Out. Temos, por exemplo, Franz Schmitt, um diretor alemão que alude ao cineasta Fritz Lang e que não fica sensibilizado com a morte de Sommers - sua preocupação é o atraso nas filmagens. Maya Silver é a atriz substituta, com um passado controverso. Earl Rath é um galã que está sempre acompanhado por uma, duas ou até três novas garotas. Phil Brodsky é o chefe da segurança no fictício estúdio Rua Vitória, um sujeito ameaçador por saber usar os punhos e também por saber os podres de todos. Tyler Graves é um ator à la Montgomery Clift - tanto na beleza quanto nos segredos.

A busca de Charlie por respostas sobre a morte da atriz se transforma em uma jornada pelo submundo de Hollywood, um passeio pelo lado sombrio de homens poderosos e uma visita a mistérios femininos. Fade Out reúne todas as características dos melhores filmes noir, mas também pode ser encarado como um daqueles seriados policiais que nos fazem varar a noite maratonando. Por terem concebido a obra originalmente em 12 edições, Brubaker e Phillips trataram de, ao final de cada capítulo, providenciar um gancho irresistível para o próximo. Somos impelidos a continuar essa descida ao inferno, ora porque fomos sacudidos por uma revelação de última hora, ora porque queremos descobrir o desenlace de uma cena de tensão, perigo, violência, ou ora porque fomos simplesmente seduzidos pelo fatalismo do texto: "E Charlie sabe que é um erro antes mesmo de as palavras cruzarem seus lábios, mas errar é tudo que lhe restou".

 TICIANO OSÓRIO

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