23 DE JULHO DE 2022
ELIANE MARQUES
ERINLÉ E O DINHEIRO NOSSO DE CADA DIA
O mais belo dos caçadores, Erinlé, e o instituidor do oráculo, Orunmilá, tornaram-se amigos. Erinlé necessitava de dinheiro e pediu a Orunmilá, que prontamente o atendeu. Contudo, o tomador do empréstimo não tinha como pagar seu benfeitor. Nessa situação, procurou ajuda de um sacerdote que o aconselhou a fazer oferendas, pois, assim, conseguiria muito mais que o dinheiro para saldar a dívida. O problema é que Erinlé não teve dinheiro para as oferendas. Envergonhado, dirigiu-se até o lugar desabitado onde caçava, depositou seu ofá no chão e desapareceu terra adentro. Embora o itán continue, para os fins desta coluna, importa apenas a parte transcrita.
Como muitos de nós, Erinlé preferiu ser engolido pela terra a trocar seu discurso de impossibilidades, equivalente à quebra dos laços com Orunmilá, com o sacerdote... Pode-se considerar sua insistência no "eu não tenho", no "eu não tenho dinheiro", sob diversos aspectos (econômico, político, sociológico). Contudo, a psicanálise faz desse itán uma leitura singular, especialmente porque, nela, o dinheiro assume o valor de um significante. Significante é o que representa ao sujeito para outro significante. Portanto, quando se quer agarrá-lo, ele foge. Acontece que, para a instância inconsciente, o dinheiro pode perder esse valor de circulante e assumir caráter metafórico, substituindo ou encobrindo qualquer palavra (excremento, presente, órgãos sexuais).
O itán omite o destino que Erinlé emprestaria ao dinheiro que recolheu de Orunmilá, justamente porque isso não interessa. Não se trata de dinheiro para o fim de suprir uma necessidade material e específica do futuro orixá. Assim como o significante está exilado do conjunto das palavras, o dinheiro está exilado do conjunto das demais mercadorias. Ele se inscreve na política do desejo.
Recordemos que um dia Erinlé foi tudo para Iemanjá até que ela o devolveu ao mundo, depois de tê-lo raptado. Porém, o caçador conhecera os enigmas do mar e, para que não os revelasse, Iemanjá cortou sua língua. Podemos pensar que, no fundo do mar, Erinlé se sentia perfeito, o melhor dos presentes de Iemanjá. Não precisava dar ou estabelecer laços sociais, ele já era o presente. Perdida essa condição, ele preferiu sofrer pelo que supostamente não tinha a reconhecer que, agora, teria que dar algo além de seu próprio corpo.
Aqui, dar algo significa manter um laço social que não seja o de puro gozo. A ausência de dinheiro teve para ele a eficácia de um pré-texto, algo que precede o texto da sua vida estancada num estado infantil de necessidade e castigo por seus sentimentos hostis - não ter para não dar e para não ser incomodado, pois ninguém pede a quem não tem. Ter ou não ter parece ser a questão, mas não o é. Talvez a única pobreza de Erinlé fosse a de seguir pensando sua vida como se ele ainda o dinheiro de Iemanjá, assim como nossa única pobreza talvez seja a de conceber nossa vida com o excesso ou a falta de dinheiro dos nossos genitores.
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