09 DE JULHO DE 2022
ELIANE MARQUES
AS FALADEIRAS
Para a psicanálise, cada um ouve com o aparelho auditivo que tem. E quando falo em aparelho auditivo, não falo da coisa orgânica. Aparelho auditivo é uma metáfora para dizer que nossa escuta se constitui, inicialmente, a partir do que disseram de nós. E o que nós ouvimos geralmente não foi o que disseram.
O itã (do iorubá, "ìtàn") "Oxum exige a filha do rei em sacrifício" fala muito bem disso. O rei de Owu, ou Olowu, não podia atravessar o rio onde vivia Oxum em razão da forte correnteza. Então, ambos fizeram um pacto: ela baixaria o nível das águas em troca da bela prenda a ser oferecida por ele.
Baixado o nível das águas por Oxum, o Olowu passou com seu exército, jogando no rio a bela prenda, uma grande oferenda com as melhores comidas e bebidas, os mais finos tecidos, joias luxuosas, perfumes raros. Mas tudo foi devolvido para as areias das margens de Oxum. Ela entendeu que o Olowu lhe oferecera Prenda Bela, sua mulher e filha dileta do rei de Ibadã e não bela prenda.
Sempre haverá um descompasso entre a fala e a escuta, um descompasso estrutural que não se resume a problemas de comunicação. Sempre haverá um mal-entendido ou um equívoco. É isso que nos singulariza como gente do mundo da palavra. O que ouvimos do que falaram de nós faz marca - uma marca subjetiva que chamamos de "significante". Vocês devem estar se perguntando quando falaram e quem falou? Quem são essas faladeiras?
Antes de nascermos, já havia uma fofocalhada sobre nós que apenas se intensificou. Poderíamos nos remeter ao livro Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici, em que ela afirma que "fofoca" foi uma palavra cujo sentido pejorativo remonta ao tempo em que as mulheres europeias foram desapossadas de suas terras, de modo que a vida comunitária, mantida em processos de conversação com outras, foi desqualificada como "fofoca". Ou, ainda, poderíamos nos remeter à narrativa segundo a qual a deusa grega Hera condenou Eco a repetir sempre a última palavra enunciada por seu interlocutor, como pena aplicada a uma fofoqueira por tentar encobrir as aventuras de Zeus com as ninfas.
Também podemos nos remeter ao seguinte itã. Um dia Orumilá saiu em expedição e deixou Aleso, sua esposa, tomando conta da casa. Em vez de fazer o serviço doméstico, ela ficava fofocando, recusando-se a ouvir as advertências do marido, até que ele a amaldiçoou com uma vida de palavras sem rosto. Irritada, Aleso virou espírito. A parte do mito que nos importa hoje termina nesse ponto. Embora não aos ouvidos do marido, Aleso era grande trabalhadora.
Sinto dizer que Orumilá estava equivocado. Não podemos renunciar a sermos um pouco de Aleso, pois, se o inconsciente está estruturado como linguagem, tal linguagem, em se tratando de Améfrica, não pode escapar à poética dos itãs, fundantes de uma civilidade perdida, assim como perdida para sempre está a voz de Aleso. Cometemos equívoco se concebermos "itã" apenas como história. Itã um discurso que poderá se constituir na resolução do enigma vivido pela singularidade amefricana de cada qual.
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