11 DE SETEMBRO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL
NOTTURNO
Em 1998, aos 20 anos, quando ganhou um dos maiores prêmios da música brasileira, André Mehmari lançou seu primeiro disco, Odisseia. Zarpava então um Ulisses ao piano, pronto para explorar multiversos de maravilhas musicais e criar novas obras-primas, com sabedoria e beleza. Desde então, foram 45 CDs, todos de altíssima qualidade, integrando na mesma criação o samba, o choro, a valsa, o folclore musical brasileiro, Beatles, a MPB, o jazz e a música erudita nacional e universal, com absoluta liberdade criativa e entrega ao sopro de Musas generosas. Esta obra já é um marco na história da música e ora avança com Notturno 20>21, publicado neste 7/9. Da Odisseia a esta declaração musical, há muito a pensarmos, sobre o mundo, nós, o Brasil e o que tem a dizer artista tão raro e precioso como André Mehmari.
O artista comunica-se por símbolos, e estes são mensagens estéticas plenas de possibilidades, sobre as quais podemos sentir e pensar, e seguir por muitas vias. No caso do piano solo (música instrumental), os símbolos são mais sofisticados e abrem sentidos nos contextos de autoria e nos vários detalhes da concepção, que vão dos títulos e andamentos aos estilos e afetos, na seleção e ordem do repertório, e incluem o que sabemos do autor, de seus e nossos mundos e do que podemos imaginar, ao despertarmos com o eco de sons maviosos.
Notturno é música para se ouvir na noite funda, com mente alumiada por poesia, como nos Noturnos de Chopin, ou de dia, quando evocamos a luz poética acesa à noite; é como apontou Heráclito de Éfeso (c. 540-470 a.C.): "O homem de noite uma luz acende para si, morto, extinta a vista, mas vivo ele acende do morto quando dorme, extinta a vista, e quando desperto se acende do que dorme" (fr. 26 DK; trad. J.C. de Souza). A frase é cheia de mistério, como a música noturna, e nos faz pensar, como o faz Notturno 20>21. Assim avançamos trevas adentro, com André e a tocha da alma a revelar o que o dia ofusca, a iluminar o que transita entre o sonho, a morte e a vida, sensíveis ao cintilar da bílis negra, melancolia, prontos para ascender em luz trespassando tênebras.
Em Notturno 20>21, ouvimos com pianismo brasileiro e contemporâneo um artista dialogar cordialmente com Tarquinio Merula (1595-1665), Henry Purcell (1659-1695), François Couperin (1668-1733) e J.S. Bach (1685-1750), revelando com timbres bem achados os afetos de outras eras, tornados nossos. Na Balada opus 10 nº 4, de J. Brahms (1833-1897), vamos com André divagar e flanar em enlevos e harmonias sublimes, e encontrar o alívio do coração, vital nesta era de sombras. Entram também Hermeto Pascoal, bruxo maior da música brasileira, e lembranças do grão-mestre Keith Jarrett. O artista tece o roteiro com o fio de oito obras suas, das 16 gravadas, nas quais nos infunde os ritmos, a graça e a energia para atravessarmos esse bosque escuro, com amor, boa brasilidade e arte.
Lançado na data nacional por um brasileiro que sabe da gravidade do que ora vivemos, Notturno 20>21 é testemunho de uma era e mensagem de sublimação e vida. Obrigado, André!
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