segunda-feira, 6 de setembro de 2021


06 DE SETEMBRO DE 2021
CÍNTIA MOSCOVICH

Um mar muito aberto

A poesia, por sua densidade de enigma, tem como vocação desacomodar. Quando a poesia, no entanto, torna-se solidária com aqueles que nada podem, então, mais do que inquietar, ela comove.

Diários em Mar Aberto (Folha de Relva), novo volume de poemas do professor Leonardo Tonus, ao jogar luz sobre a situação de refugiados e apátridas, veste-os de uma inédita humanidade - e então comove profundamente.

Paulista, professor de Literatura Brasileira da Sorbonne Université de Paris, condecorado Chevalier das Palmas Acadêmicas e Chevalier das Artes e das Letras, idealizador da Primavera Literária, Tonus ocupa uma posição que lhe permite um olhar íntimo sobre a questão de todos os excêntricos dessa nova diáspora. Sem reivindicar lugar de fala, sem esquemas formais rígidos mas atento a uma linha melódica (que evoca o jazz), Tonus elabora seus poemas sempre a partir de alguma provocação, geralmente a partir de declarações homofóbicas ou racistas de figuras públicas, tornando, de repente, belo o que era cruel. Intenção condensada no poemeto Que (re) começa: "todo brasileiro traz na alma de seu corpo / a sombra de um indígena / ou de um negro // morto".)

Com orelha da professora Regina Dalcastagnè, capa e ilustrações de Vitor Rocha, o livro relembra inclusive de Pierre Seel, sobrevivente do campo de Schirmeck-Vorbrück, deportado por ser homossexual: "tu és a pétala em flor / deste fim de mundo / no fim de mundo / em que resides. / rosa judia, tu és a vadia, a asquerosa Selavy (...)".

Há momentos em que o verso se alonga, como em Na Hora da Muda Sabiá Não Canta, em que o autor faz um pasticho de uma edição do Der Spiegel de 2017 que, em 48 páginas, dava os dados de cerca de 35 mil afogamentos de refugiados, cujo resultado é impressionante.

Tonus também visita a ascendência, essa fortuna intransferível, tema recorrente no livro, como a compor uma identidade corrompida e que com coragem e amor se compõe. O poema em prosa Caixas Sem Ponteiros termina assim: "no centro da sala estava a mesa de fórmica, sobre a mesa havia uma caixa. dentro da caixa, estavam minhas avós". Verdadeiro e comovente.

CÍNTIA MOSCOVICH

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