sábado, 25 de fevereiro de 2023



25 DE FEVEREIRO DE 2023
DRAUZIO VARELLA

COISAS DA VIDA

Quantos filhos a senhora teve? Quantos criou? No curso médico, éramos instruídos a fazer essas duas perguntas em sequência, ao anotar a história da paciente no prontuário. A resposta nos dava ideia do nível socioeconômico e das condições de vida das mulheres que procuravam o Hospital das Clínicas, em São Paulo, nos idos de 1960.

Não era raro ouvir que haviam dado à luz 10 ou 12 e criado sete ou oito. Perder filho era uma das tragédias que as famílias daquele tempo se viam obrigadas a aceitar com resignação, pela vida afora.

No livro Evolution and Human Behavior, Anthony Volk e Jeremy Atkinson analisaram diversos estudos sobre as taxas de mortalidade antes de alcançar a vida adulta, na história da humanidade. Separaram os dados em dois períodos: 1) mortalidade no primeiro ano de vida. 2) mortalidade total antes dos 15 anos de idade.

O levantamento das séries históricas mostrou que, em média, 26,9% dos recém-nascidos morriam antes de comemorar o primeiro aniversário, e que 46,2% de todas as crianças não chegavam aos 15 anos. Em termos gerais: uma em cada quatro morria no primeiro ano de vida; apenas metade dos nascidos chegava à idade adulta.

O que mais chamou a atenção dos autores, entretanto, foi a consistência desses números nas 43 culturas históricas avaliadas. Na Grécia Antiga, na Roma Antiga, na China Imperial, nas Américas pré-Colombianas, na Inglaterra e no Japão Medievais ou na Renascença Europeia, as taxas de mortalidade eram da mesma ordem: morria um bebê em cada quatro; metade das crianças não atingia a maturidade reprodutiva.

Esses números seriam confiáveis? Não subestimariam a capacidade de sobrevivência de nossa espécie, nas fases iniciais da vida?

Não é o que os dados revelam. O crescimento populacional na maior parte da história foi lento, apesar de taxas de natalidade acima de seis filhos por mulher. Se a média fosse de seis filhos por mulher, a população do mundo deveria triplicar de uma geração para a outra. Na realidade, do ano 10 mil antes de Cristo ao ano de 1700 da época atual, o crescimento populacional foi de míseros 0,04% ao ano. Grande número de nascimentos sem aumento significativo da população só pode ser explicado por índices elevados de mortalidade antes da idade reprodutiva.

Os demógrafos foram ainda mais longe: analisaram os estudos existentes sobre a mortalidade nas espécies geneticamente mais próximas do Homo sapiens. Nos neandertais, por exemplo, que habitaram a Eurásia de 400 mil a 40 mil anos atrás, espécie com genes tão parecidos com os nossos que possibilitaram a miscigenação, a mortalidade no primeiro ano de vida é estimada em 28%.

Já entre os grandes primatas não-humanos, a compilação de várias estimativas permitiu concluir que nos chimpanzés e nos gorilas os índices de mortalidade no primeiro ano de vida e antes da puberdade são semelhantes aos dos nossos antepassados. Nos orangotangos e nos bonobos eles parecem ser até mais baixos do que os dos humanos.

Na história da humanidade, sociedades que viveram em ambientes diversos, a dezenas de milhares de quilômetros de distância, em cinco continentes, separadas por milhares de anos, mantiveram taxas altíssimas de mortalidade na infância, não muito diferentes daquelas dos grandes primatas que viviam nas florestas.

No século 20, ocorreram transformações dramáticas que duplicaram a expectativa de vida na maior parte dos países. Mesmo nos mais pobres os ganhos foram substanciais. Estão por trás desse aumento da longevidade, a revolução verde que permitiu levar alimentos de qualidade a grandes massas populacionais e três grandes avanços científicos: vacinação, teoria dos germes e antibióticos. Tais benefícios, entretanto, jamais teriam chegado à vida cotidiana sem a ação dos movimentos sociais, como os que aboliram a escravatura, reduziram as desigualdades, democratizaram a educação e persuadiram as pessoas a lavar as mãos, não fumar, abandonar o sedentarismo e a tomar vacinas.

Hoje, os indicadores de saúde revelam que cerca de 95,4% de todas as crianças do mundo chegam vivas aos 15 anos. Os ganhos foram desiguais, no entanto. A Somália tem a mortalidade mais alta do mundo, nessa faixa etária: 14,8%; a Islândia, a mais baixa. A probabilidade de um recém-nascido islandês chegar aos 15 anos é de 99,7%, ou seja, perdem a vida nesse período somente três em cada 1.000 crianças.

DRAUZIO VARELLA

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