segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023


20 DE FEVEREIRO DE 2023
+ ECONOMIA

Reforma já tem abre-alas

Ainda antes do Carnaval - fato raro no Brasil - começou a desfilar o abre-alas da reforma tributária. É bem tradicional, baseado nos projetos que já tramitavam no Congresso, e procurou evitar inovações muito disruptivas como as apresentadas na avenida por alguns carnavalescos. Mesmo assim, a turma do "no meu bolso não" já se mobilizou, mesmo sem saber ao certo se de fato vai doer.

Na Câmara, o presidente Arthur Lira (PP-AL) não deu sinais muito alentadores. Disse que passará a "reforma possível", o que parece pouco e talvez sob medida. Até o secretário especial para o tema, Bernard Appy, reconhecia antes de assumir o cargo que comércio e serviços precisam ser compensados de alguma forma pelo aumento da carga.

Como o sistema tributário brasileiro é como o Tiririca - pior do que está, não fica -, será preciso encontrar solução para os aumentos de carga setoriais que já provocam lobby contrário à mudança. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, havia afirmado, no final de janeiro, que seriam apresentadas "respostas" para as "suscetibilidades setoriais". É bom que sejam apresentadas logo, antes que o clima azede. Mas, isso sim, depois do Carnaval.

HUGO BETHLEM Presidente do Instituto Capitalismo Consciente

Com quatro décadas de experiência como executivo do varejo. - Carrefour, Extra, Pão de Açúcar -, Hugo Bethlem é cofundador e presidente do conselho do Instituto Capitalismo Consciente Brasil (ICCB), cujo propósito é ajudar a transformar a forma de se fazer investimentos e negócios no Brasil. Em 2 de março, a entidade que completa 10 anos em 2023 começa por Porto Alegre encontros regionais que vão desaguar no III Fórum Brasileiro. E com tema escolhido a dedo: desigualdade no acesso à educação de qualidade. Em conjunto, o instituto discute "10 igualdades" contrapostas às desigualdades que combate.

O tema da educação, uma dívida do Rio Grande do Sul com a sociedade, foi uma escolha?

Entendemos que a desigualdade no acesso à educação de qualidade é crucial porque sua reversão pode tirar as pessoas da pobreza e elevar sua dignidade. É o segundo ponto depois da fome. Com fome, ninguém trabalha, ninguém estuda. É um marco gravíssimo, e a gente andou alguns anos para trás. E educação não passa só pelas escolas, mas por dar oportunidade aos que tiveram deficiências, seja pela qualidade do ensino, seja por falta de oportunidade. Essas pessoas não podem ser penalizadas quando chegam às empresas. E não dá para dizer ?não é responsabilidade minha?. Se é uma empresa consciente, que tem pilares ESG (governança corporativa, social e ambiental), tem de cuidar do contrato social. Que não vem de ?sócio?, mas de ?sociedade?. Empresas têm responsabilidade, sim, de dar oportunidades. Quem enfrentou dificuldades tem de ser equiparado aos demais. Aí sim é possível ter capitalismo de verdade, com disputa, meritocracia. Isso não significa levar para baixo, mas puxar para cima.

A adesão ao capitalismo consciente é maior, com o ESG?

O ESG é de 2005. Nasce de uma provocação de Kofi Annan (na época secretário-geral da ONU). Mas foi entre 2020 e 2021, durante a pandemia, que Larry Fink, do BlackRock (apontado como maior fundo de investimentos do mundo), disse que para ter propósito e valores era preciso praticar ESG. Com alguém tão influente passando essa mensagem, as empresas começam a dar atenção ao tema e tratar todos os stakeholders (clientes, funcionários, comunidade) de forma equânime. A licença que as empresas têm para operar neste planeta só vale se seguirem os pilares do ESG. E só vai ser verdade se essas práticas forem transparentes. Tem muita empresa que só quer maximizar seu lucro à custa da dor, da miséria e do sofrimento de outras partes. Temos só 220 empresas associadas ao IBBC.

Como o caso Americanas impacta esse cenário?

Quem diz que sabe sobre Americanas não sabe. É uma empresa igual a milhares no mundo, infelizmente. O mau exemplo é a cultura da obsessão sobre resultado. Mas muita gente é culpada. Enquanto a situação foi positiva, ninguém falou nada. Agora, o mesmo banco que cobrou resultado está atirando pedra, mas foi conivente.

Como um dos sócios tem uma fundação social, esse tipo de atividade pode ser impactada?

Muitas vezes, um CEO sai porque obteve resultados abaixo do esperado. Quem dita o que é esperado? Não estamos em jogo de regras finitas. Tem muita irresponsabilidade do mercado financeiro, que deixou de ser investidor para ser especulador. Esse modelo parecia ser um sucesso, por maximizar lucro para distribuir a acionistas e pagar bônus gigantescos. Isso amplia a desigualdade salarial. Muitas empresas acreditam cumprir seu papel social ao ter todos os funcionários com registro na CLT e pagos em dia. Isso não basta. Quantas vezes o CEO ganha a mais do que a base da pirâmide? Duzentas, quinhentas? Se essa base consegue ter vida digna para si e seus familiares, se não tem uma vida miserável mesmo registrada na CLT, tudo bem. Se não, é preciso olhar para isso antes de qualquer outra coisa.

O anúncio da Americanas de que pagará antes os pequenos credores atenua o dano?

Da noite para o dia, essa empresa pagou à vista por 13 milhões de ovos de Páscoa. E deve R$ 100 milhões para pequenas empresas que podem quebrar se não receberem. Poderia ter diminuído o número de ovos e garantir o sustento de pequenos negócios. ESG não é sobre criar fundações ou fazer benesses com pouco dinheiro. Isso é comprar travesseiro para consciência. Hoje, a boa governança não recomenda fundações ou institutos, mas ações diretas.

MARTA SFREDO

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