sábado, 4 de fevereiro de 2017


04 de fevereiro de 2017 | N° 18760 
DAVID COIMBRA

Os loucos e a morte de Marisa Letícia

A política enlouquece as pessoas. A maneira como muitos brasileiros se comportaram no episódio da morte de Marisa Letícia demonstrou o nível perigoso de loucura a que chegou o país. Houve quem comemorasse a morte, houve quem acusasse o juiz Moro pelo que ocorreu, todos com óbvia, rasteira, baixa motivação política.

Dona Marisa era mulher de Lula, que é venerado e odiado. Sim. Mas era, também, mãe e avó. Nem por filhos e netos manifestou-se respeito, tanto de parte dos que veneram quanto dos que odeiam Lula.

Eu achava que a política era só uma justificativa, que o sujeito perturbado se perturbaria com qualquer outra coisa, como religião ou futebol, mas não. O problema é a política mesmo.

A religião pode servir como consolo, o futebol pode servir como diversão. Uma e outro são, em essência, positivos, originam-se de bons sentimentos dos seres humanos.

A política, não.

A política é, em essência, a disputa pelo poder. Tudo se torna subalterno a essa disputa, tudo pode ser usado nessa disputa, inclusive o futebol e a religião. Inclusive a morte de um ser humano.

O brasileiro, de uns anos para cá, politizou-se espetacularmente. A maioria da população, é claro, continua indiferente a esse jogo. No Brasil, como em qualquer parte do mundo, as pessoas chamadas “comuns” estão pouco ligando para quem exerce o poder ou para a igualdade.

Igualdade é assunto de intelectual.

A massa silenciosa quer viver bem, quer ter um trabalho e uma casa, quer poder cuidar da família, divertir-se aos fins de semana – não muito mais do que isso.

Um pedaço do Brasil, porém, passou a se importar com a política, ultimamente. Passou a ter opinião e a opinião se transformou em causa e a causa se transformou em obsessão e a obsessão se transformou em loucura.

Não que o assunto seja novo para essas pessoas. Se você prestar atenção, verá que esses que hoje são os mais dementes já faziam incursões na política tempos atrás. Mas eram suaves, um palpitezinho aqui, uma declaração de voto ali, uma conversa meio casual no bar.

Por que era tão tranquilo?

Porque todo mundo concordava. Ninguém era a favor da ditadura. Dentro do Exército havia gente contra a ditadura. Figueiredo era contra a ditadura, a ponto de prometer prender e arrebentar quem se opusesse à redemocratização.

Quando o Exército enfim se retirou da disputa política, abriram-se as possibilidades. Agora, todos podiam alcançar o poder. A situação ficou mais complexa. Mas nem tanto.

Lembro da primeira eleição presidencial, depois de 25 anos. Na véspera, escrevi uma coluna em que dizia haver cinco candidatos dignos de voto: Brizola, Lula, Covas, Roberto Freire e Ulysses Guimarães. Os outros, argumentei, eram de alguma forma egressos da ditadura. Não deviam ser votados na eleição da volta da democracia.

Era um raciocínio fácil. Ainda havia apenas dois lados a escolher. Só que o Brasil se sofisticou. Esses cinco que, em 1989, estavam no mesmo campo, tornaram-se adversários e passaram a se esforçar para mostrar as diferenças que havia entre eles.

Mesmo assim, o Brasil poderia seguir escolhendo ora um, ora outro, sem maiores sobressaltos. Afinal, eram todos meio parecidos. Lula no poder foi a demonstração prática dessa semelhança. Lula nunca teve ideologia, nunca foi socialista, nunca foi dogmático. Lula abraçava qualquer um que lhe desse apoio – até o maior símbolo do “outro campo”, Paulo Maluf.

A falência do projeto petista é que ideologizou o país. Os distraídos empunharam bandeiras e pularam para trás de trincheiras. Bateram-se tanto, discutiram tanto, que enlouqueceram. Hoje vejo pessoas antes sensatas esgoelando-se em discursos fanáticos.

A cantilena de que Dilma foi vítima de golpe é conversa de maluco. Acusar quem defende os direitos humanos de ser “esquerdopata” é conversa de maluco. Culpar o juiz Moro pela morte de dona Marisa ou gritar que Temer é assassino na porta do Sírio-Libanês é atitude de maluco. Comemorar a morte de dona Marisa ou se satisfazer com a dor de Lula é sentimento de maluco.

Não é problema de caráter, não é caso de burrice; é loucura. A política os enlouqueceu. E nem a morte é capaz de curar.

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