11 de fevereiro de 2017 | N° 18766
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
NUNCA MAIS TER MEDO
O toque físico, do qual o abraço é o modelo mais eloquente, não é uma atitude universal. Abrace de súbito um japonês, e provavelmente, ele responderá com um golpe de caratê. Se tentar retribuir a gentileza de um americano com mais do que um prosaico aperto de mãos, ele recuará como se tivesse certeza de que pretendia contaminá-lo com o Ebola. E, se for um funcionário do governo, o Bureau Federal será comunicado.
Enquanto isso, os latinos se abraçam, se beijam e choram com uma naturalidade que os anglo-saxões não compreendem. Da minha experiência americana, aprendi que esta couraça de autossuficiência é expressão de saúde perfeita, porque a doença dissipa essas diferenças e, assustados, nos tornamos uns bebezões mimosos, carentes e apátridas. É esta a sensação que se tem ao ouvir Ed Garavan em um dos depoimentos mais emocionantes do TED, este site de tanto sucesso.
Garavan é um nova-iorquino de uns 40 anos que relata uma experiência traumática que se seguiu ao atentado sofrido tarde da noite em uma calçada do Brooklin. Selecionado aleatoriamente para a iniciação de um dos membros de uma gangue, foi esfaqueado três vezes, conseguiu desvencilhar-se, caiu na rua logo adiante, foi socorrido a tempo e levado, em condição crítica, à emergência do hospital mais próximo, com ferimentos graves, cuja correção ocupou uma equipe cirúrgica durante toda a madrugada e consumiu 40 unidades de sangue em transfusão.
Quando acordou no segundo dia, sentia uma dor lancinante em todo o corpo, a qual descreveu como se tivesse sido recém-colocado num tanque de gelo. Surpreendeu-se ao perceber que só não doía o peito do pé esquerdo, justo naquele ponto em que se apoiava o polegar do cirurgião, postado ali na expectativa de que, contra todas as probabilidades, ele despertasse. Aquele minúsculo ponto de apoio teve efeito analgésico maior do que a morfina, porque era, naquele momento, a única conexão afetiva no universo desconhecido e hostil de uma UTI.
Não tenho dúvida de que grande parte do desencanto dos pacientes com os médicos desta geração pode ser explicada pela distância física favorecida pelo uso rotineiro dos modernos métodos de diagnóstico. O olhar, antes dirigido ao doente, foi progressivamente transferido para os monitores. Quantas vezes ouvimos de pacientes, saindo decepcionados de consultórios, a queixa: “Ele nem me encostou a mão e já pediu um monte de exames”? Afora o desapreço pela importância do exame físico, que os mais experientes valorizam sempre, há uma evidente tendência de evitar qualquer toque físico que possa facilitar a proximidade afetiva. A profilaxia do vínculo generoso é estabelecida pela rispidez e antipatia, que produzem uma blindagem conveniente aos que não têm afeto para viver, imagine para desperdiçar com desconhecidos!
Algumas unidades ambulatoriais até instruem os médicos mais jovens “a não serem tão melosos com esses velhinhos carentes porque, se não, vocês vão ver, no próximo plantão eles vão estar todos aqui, outra vez!”
A dona Manuela chorou quando lhe expliquei que devia ficar internada uma semana para a cirurgia, e só secou os olhos quando massageei aquela mão, duma maciez que só os muito velhos têm. Na despedida, ela parecia mais aliviada. Cinco minutos depois, percebendo que eu continuava sozinho na sala, ela voltou: “Minha filha foi buscar o carro porque está chovendo muito, e então eu pensei que se o senhor pudesse segurar a minha mão mais um pouquinho, eu nunca mais ia ter medo!”
E sentou-se à espera da continuação do tratamento.
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