sábado, 18 de fevereiro de 2017



18 de fevereiro de 2017 | N° 18772 
ANTONIO PRATA

EU NÃO QUEROFICAR VELHINHA

Com quase quatro anos, minha filha começa a compreender um elemento fundamental da existência: o tempo. Meu filho, de dois, não tem a menor ideia de que haja um antes e um depois. Sua vida é um agora contínuo, uma tela diante da qual passam mamadeira, berço, carrinho, pudim, avó, banho, Lego, minhoca.

Outro dia, me meti numa encrenca porque resolvi falar que “amanhã” seria aniversário dele e ele iria ganhar presente. Ele abriu um sorriso, pediu o presente. Eu disse “amanhã”. Ele pediu de novo, educadamente, mas já sem o sorriso. Repeti, educadamente (e sorrindo muitíssimo), que o presente seria dado “amanhã”. Foi aquela choradeira. Claro. É como chegar pra um adulto e dizer “O senhor ganhou na Loto”. “Cadê o dinheiro?”. “Szjnausshchfundstrrrrrulmp!”. “Onde?!”. “ Szjnausshchfundstrrrrrulmp!”

A minha filha, por sua vez, usa “amanhã” com bastante desenvoltura: pra nomear qualquer dia que não seja hoje, no passado ou no futuro. “Amanhã, quando eu nasci e era bebê”. “Amanhã quando for Natal de novo”. “Amanhã, quando eu tiver a minha filha, ela vai chamar Isabela Belink”. (É sério, não me pergunte por quê.)

Semana passada, diante de uma foto minha com a idade dela, ela finalmente entendeu que eu já fui criança. Passou uns segundos ressabiada, olhando a foto, olhando pra mim, então algo se iluminou: “Mas papai, quando você era do meu tamanho você morava em outra casa, né?”. “Morava”. “E essa casa era muito longe daqui, né?”. Eu disse que era perto. Ela ficou aflita. “Não, papai! Quando você era pequeno você morava numa casa muito, muito, muito, muito, muito, muito longe daqui!”. A distância física, compreendi, era a maneira que ela tinha de elaborar a distância temporal.

Julio Cortázar, um dos meus escritores favoritos, se impressionava bastante com o tempo. Em entrevistas, mencionava sempre certa viagem no metrô de Paris. Nos dois minutos entre uma estação e outra, ele havia se lembrado de uma história que, dentro da sua cabeça, tinha se desenrolado por pelo menos 15 minutos. Como 15 minutos cabiam em dois? Algo parecido acontece com os sonhos, que duram só os poucos segundos do REM (“Rapid Eyes Movement”), mas parecem se descortinar na nossa consciência como longas-metragens. (Alguns pesadelos são mais intermináveis que filmes mudos experimentais do Uzbequistão.)

Deve ser ignorância minha, mas não acho o tempo misterioso, só acho cruel. Ele passa, a gente envelhece e depois adeus pudim, presentes de aniversário, metrô de Paris. Minha filha, com quase quatro anos, também começa a entender que essa história de o tempo passar não tem como acabar bem. Numa livraria, um dia depois de descobrir que eu havia sido criança, ela viu duas velhinhas, bem velhinhas, pagando as compras. Abraçou as minhas pernas e perguntou: “Papai, eu também vou ficar velhinha?”. Eu sussurrei: “Vai, mas fala baixo”. “Papai, eu não quero ficar velhinha!”. “Shhhh, fala baixo!”. “Não, papai, eu não quero ficar velhinha!”. Abandonei a fila com ela gritando: “Não quero! Não quero ficar velhinha!”.

Vai demorar um pouco pra ela entender que, em relação ao tempo, o melhor que pode acontecer é ficar velhinha. Enquanto isso, tento acalmá- la dizendo que ela, velhinha, mora numa casa muito, muito, muito, muito longe daqui: indo a pé, de carro ou de avião, vai levar mais de 80 anos pra chegar.

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