14 de fevereiro de 2017 | N° 18768
CARPINEJAR
No tempo das cartas
Existe um mundaréu de gente que nunca recebeu uma carta – acho uma pena. É um suspense lindo. Carta está lacrada, traz aquela sensação de ser especial, exclusivo de alguém. Como não mostra o assunto, diferente do e-mail, cria o segredo e alimenta a curiosidade.
Carta tem rituais. É aprender a abrir pelos lados sem rasgar o conteúdo. Coloca-se o envelope contra a luz para acertar o rasgo. Nos escritórios antigos, as mesas exibiam uma espátula para não violar a natureza frágil da dobradura. Alguns mais sábios usavam o vapor da chaleira para desprender a cola.
Cartas eram beijadas quando traziam boas novas. Cartas eram insultadas quando terminavam um romance. As tragédias e as mortes só vinham por telegramas e isentavam as assíduas missivas da função de corvos.
Havia mais esperança na época das cartas. Quantos soldados no front não morriam somente para ler a próxima notícia dos familiares? Havia mais solidão na época das cartas. Logo que se recebia a correspondência, existia o hábito de esperar o momento de estar sozinho para descortinar a sua mensagem.
Colecionavam-se cartas em caixinhas de sapatos, maços amarrados com barbantes. Sua prova física permitia facilmente a revisão de trechos e passagens nos períodos de maior saudade.
Cartas amarelavam como livros. Transmitiam, com fidelidade, a ação dos anos em suas folhas.
A carta possuía status de fotografia, de testamento. Guardavam-se os selos comemorativos como homenagem de uma fase histórica. Cartas reduziam a distância geográfica e espiritual simultaneamente. Quem estava longe ficava perto, quem estava perto ficava íntimo.
Tenho dó dos meus filhos, dos meus netos, que não encontrarão serventia para a chave da caixinha de correio, que apenas herdarão contas e faturas e nenhum documento escrito a mão, que possa fazer tremer pelo desconhecido.
A carta é como roupa passando pela máquina de costura do pensamento, feita sob medida, é o mais próximo que o papel chegou do pano. A carta é quando dedicamos o nosso tempo a alguém. Não há maior declaração de amor do que perder tempo para uma pessoa.
É sondar o pior e o melhor e escolher o que deve ser registrado com esmero, é escrever várias vezes até não errar mais, é vigiar o fim das linhas, é jogar rascunhos fora, é caprichar na letra, é comprar envelope, é ir ao correio, é selar a correspondência, é procurar o CEP.
Todo mundo não poderia passar pela vida sem ganhar uma cartinha.
Degustar a espera, não suportar a ansiedade, responder e aguentar 10 dias para descobrir se o destinatário gostou de suas palavras. Na época das cartas, vigorava um intervalo fundamental para imaginar o outro, sonhar com o outro, amar o outro.
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