23 de fevereiro de 2017 | N° 18776
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno
Qorpo Santo
DE TROIA A PORTO ALEGRE, como o fogo de São Telmo pode ter virado o nome de um dramaturgo gaúcho
Fique sabendo, amável leitor, que as linhas que você está lendo foram escritas diretamente de Esparta, no Peloponeso. Para os padrões gregos, é uma cidade muito recente, de arquitetura inexpressiva, anódina, semelhante a muitas cidades brasileiras; da antiga Esparta, pouca coisa restou além de restos de antigos muros. Uma verdadeira tapera, diria o Blau Nunes dos Contos Gauchescos...
O que nos trouxe aqui fica um pouco mais além, nos arredores da cidade: o Meneláion, uma elevação pouco conhecida dos turistas, no topo da qual teria sido sepultado o rei Menelau, um dos vencedores da guerra de Troia. Lá em cima não existe templo nem monumento algum, e é muito provável, até, que a existência do túmulo real não passe de uma crendice popular. O que nos leva a trilhar o longo (e belo) caminho entre oliveiras que vai até o topo é a visão magnífica do vale do Rio Eurotas, cujo verde contrasta, neste mês de fevereiro, com um fundo impressionante de altas montanhas nevadas.
Foi nas margens desse rio que Zeus, o senhor do Olimpo, assumiu a forma de um cisne para seduzir Leda, a jovem rainha de Esparta. Essa relação foi muito importante para a mitologia clássica, pois dela nasceram Clitemnestra, Helena (a mulher mais bonita do mundo) e Cástor e Pólux, os dois gêmeos guerreiros, que se tornaram as divindades preferidas dos espartanos e, curiosamente, os protetores dos marinheiros e pescadores em perigo. A eles eram atribuídas aquelas pequenas chamas que podem aparecer nas extremidades dos mastros e das vergas dos navios, quando o tempo se arma para tempestade,
Para a Ciência, estas luzes não passam de um produto da eletricidade da atmosfera; para os antigos, porém, eram um sinal de que os dois irmãos tinham vindo ajudar o navio a alcançar um porto seguro. Com a derrocada do mundo clássico e a chegada do cristianismo, Cástor e Pólux perderam seu lugar para um santo italiano, São Telmo, padroeiro dos marujos do Mediterrâneo – e daí adveio a denominação mais comum para o fenômeno: fogo de São Telmo ou, mais simplesmente, santelmo.
Camões o descreve sem chamá-lo pelo nome: “Vi, claramente visto, o lume vivo/ Que a marítima gente tem por santo”; outros escritores do Renascimento português, porém, inauguram uma outra denominação. Nuno Crato, num interessante artigo sobre a descrição do fogo de São Telmo nas narrativas portuguesas no século das navegações, cita a obra de João de Castro, que, no seu Roteiro de Lisboa a Goa, escreveu “Esta aparência a que chamam Corpo Santo era uma claridade tamanha como a que costuma fazer uma candeia ou vela”. O vocábulo entrou no Inglês como corposant, que o Oxford Dictionary dá como um sinônimo de santelmo.
Pois aqui na província tivemos um tresloucado dramaturgo que escolheu Corpo Santo como seu nom de plume (ou Qorpo Santo, se escrito na ortografia delirante que ele próprio inventou). Ele explica este nome como uma referência ao tempo “em que vivi completamente separado do mundo das mulheres”, mas não podemos afastar a possibilidade de haver, consciente ou não, uma ligação com os corpos-santos, essas luzes fantasmagóricas, inquietas e velozes que não param muito tempo no mesmo lugar, como descreveu o mesmo João de Castro: “Primeiramente o vimos na ponta do mastaréu da gávea, e depois no lais da verga, e depois na ponta do mastro da mesma e depois na enxárcia”. Fica a sugestão.
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