01 de fevereiro de 2017 | N° 18757
PEDRO GONZAGA
O FORTE
A longa viagem nos levava ao Cassino, era uma das turnês da Hard Working Band, banda de soul em que eu tocava quando o mundo era 20 anos mais jovem, e, apesar de ser janeiro, soprava um vento do fim do mundo, acompanhado de um chuvisco renitente. O veranista gaúcho é, antes de tudo, um forte, mas àquela noite nem os fortes se submeteriam.
O show estava marcado para acontecer num forte à beira-mar, uma espécie de diminuto forte apache, e não lembro quantas vítimas compareceram (melhor dizer resistiram), defendidas pelo som de Aretha Franklin e Stevie Wonder dos ataques das rajadas antarticamente úmidas e de uns relâmpagos que, vez ou outra, acendiam as madeiras da murada, como fogos de uma sinistra artilharia.
Certas imagens, certas situações, certas sensações são tão raras que, mesmo vividas, parecem pertencer ao espaço do fabuloso, ao universo daquilo que apenas sonhamos. E não bastasse a fragilidade da experiência inusual (a maravilhosa invenção da rotina não a protege), ainda está o tempo, com seus pés acachapantes, que termina por tudo aplastar, fazendo da memória um só e mesmo mosto, composto de dúvidas e certezas, realidade e fantasia, projeções e fatos.
Assim, durante anos guardei a impressão de que o tal show não podia ter acontecido. Não duvidava do Cassino, mas do forte. A banda se dispersou, meus parceiros estão pelo mundo, não tive ocasião de lhes perguntar sobre aquela noite, até que neste último fim de semana, nessa espécie de homem banda que é ser um escritor, retornei ao Cassino para a tradicional feira do livro da cidade. Lá, entre a recepção tão amável do pessoal do Sesc e da FURGS, pude comprovar não apenas a existência do forte apache, mas que o local recebera grandes shows, entre eles o do Jimmy Cliff. Alívio. Alegria.
Depois ri sozinho de minha necessidade de buscar a veracidade da memória. Não sou um historiador. Mais do que isso. E se fosse invenção? Teria menos valor? Importaria mais escrever uma história e pedir por sua confirmação? Ou escrever uma história e perguntar: você viveu o que leu?
Não seria Jimmy Cliff, afinal, uma bela fantasia do século passado?
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