quarta-feira, 8 de junho de 2011


JOSÉ ELI DA VEIGA

Metas antipobreza

Nada pode ser mais imoral do que ajeitar linha de pobreza extrema especialmente talhada para tornar factível o mito de "erradicação" em poucos anos

Para o governo Dilma Rousseff, miséria é só questão de insuficiência de renda. Mas está na pobreza extrema quem não consegue converter sua renda em vida decente, pois nem sequer tem acesso ao esgotamento sanitário.

O que diz a história internacional das linhas oficiais de pobreza? Nos EUA, estão em consulta pública os critérios que definirão a "Supplemental Poverty Measure" (SPM).

É uma abordagem estrutural da delimitação da pobreza, que será acrescentada à linha restrita à renda monetária, usada há meio século: o triplo do preço da cesta de alimentos que garante a dieta oficialmente recomendada.

Inovação do presidente Obama, que segue recomendação de seminal avaliação feita há mais de 15 anos pelo National Research Council, da National Academy of Sciences: "Measuring Poverty: A New Approach" (1995).

Na UE, com linha de pobreza antes estabelecida em 60% da renda mediana nacional, algo bem parecido acaba de emergir. Uma perspectiva "multidimensional", que procura acrescentar nova medida da "pobreza de condições de vida" à velha métrica da "pobreza monetária". Iniciativa prevista na agenda adotada no ano 2000 pelo Conselho da Europa, mais conhecida por "Estratégia de Lisboa".

Nos dois casos, a maior dificuldade está na construção dos indicadores da pobreza não monetária, pois suas variáveis podem facilmente atingir duas dezenas.

Entre a falta de acesso a bens duráveis hoje essenciais (máquina de lavar, telefone, TV) e a oportunidade de ter férias fora do domicílio ao menos uma semana por ano, passando pela qualidade da moradia (segurança de aquecimento no inverno, por exemplo), quais seriam os critérios mais apropriados?

A lista inicial testada pela UE tinha 14 itens: cinco de vulnerabilidade material, quatro de acesso a bens duráveis e cinco de qualidade da moradia. Foi reduzida para nove, que geraram dois indicadores: um exclusivo para a situação habitacional e outro que agregou as duas primeiras dimensões.

Os resultados dos testes deixaram bem claro que quanto mais pobre é um país, mais essa "pobreza de condições de vida" supera em importância a tradicional "pobreza de renda" (ou "monetária"). Ao contrário do que ocorre com as nações mais avançadas. Situação também constatada nas comparações entre Estados americanos.

Seria diferente no Brasil, onde as disparidades dos custos de vida são ainda piores? Por que uma única linha monetária de pobreza extrema para todo o território nacional?

Se fosse adotada uma linha suplementar, bastariam os critérios já utilizados para determinar a "adequação da moradia", pois o principal é ter acesso ao esgoto!

É miserável qualquer família que viva em condições insalubres (seja qual for sua renda). Tal entendimento só melhoraria com a inclusão de critérios de acesso a outros bens públicos (principalmente educação e saúde), mas certamente será suficiente até que se alcance a universalização do saneamento.

O problema é que a adoção desse entendimento menos tosco tornaria mais cara e demorada a execução de qualquer meta antipobreza. Mas nada pode ser mais imoral do que o avesso: ajeitar uma linha de pobreza extrema especialmente talhada para tornar factível o mito de sua "erradicação" em poucos anos.

JOSÉ ELI DA VEIGA, 63, é professor da pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP) e do mestrado profissional em sustentabilidade do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ).

Site: www.zeeli.pro.br.

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