quarta-feira, 8 de junho de 2011


ANTONIO PRATA

Depois do açougue, antes da banca

Não está longe o dia em que o brasileiro deixará de dar informações de trânsito com tanto júbilo

SE TEM uma coisa que o brasileiro gosta é de ensinar um caminho. Pode reparar: você encosta o carro no meio fio, diz "ei, amigo, p'favor, sabe onde fica a rua Fulano de Tal?", e, passado aquele sustinho inicial, o patrício se entrega, de corpo e alma, ao discurso e à gesticulação.

Por ser a informação no trânsito, entre nós, quase um ritual, segue um elaborado protocolo. Começa com a análise do pedido: o sujeito ouve o nome da rua, endireita a postura, limpa a garganta e repete, com a cabeça levemente erguida, os olhos semicerrados, vasculhando os mapas da memória: "Rua Fulano de Tal...

Rua Fulano de Tal...". Abre então os olhos, enche o peito, apoia uma mão no carro, a outra, com o indicador fazendo jus ao nome, aponta o horizonte e, com método e seriedade, começa a explanação: "Amigão, cê vai ter que fazer o seguinte...". Terminado o colóquio, ele te toma a lição, repetindo os pontos mais traiçoeiros: "Cê entendeu, né? O cotovelo é depois do açougue, antes da banca, tá? Não tem erro!".

Ouso dizer, sem querer desmerecer-nos tampouco falar mal dos outros, que nos países ditos "desenvolvidos" não se encontra essa genuína alegria auxiliatória. Não é que no "primeiro mundo" todos sejam antipáticos. Muito pelo contrário. Já perguntei caminhos nos EUA, na Inglaterra e na Holanda e fui muito bem tratado.

Mas lá onde a grama é verde e os ônibus passam na hora marcada, você repara que a gentileza é uma imposição da cultura sobre o mau-humor natural do indivíduo: no fundo, o cidadão preferia não ter sido importunado em sua caminhada.

Afinal de contas, qual o propósito de todo o processo civilizatório, com seus exércitos e carimbos, constrangimentos e premiações, senão garantir que as pessoas não encham muito o saco umas das outras, que cada um possa tocar a sua vida como queira, sem esbarrar nas arestas alheias? Aí vem um sujeito desgovernado, "Hello, monsiuer, s'il vous plaît, dónde está la estación?" e pronto, bagunça-se o coreto.

Já em nossa "pátria tão despatriada", é diferente. Aqui, a civilização nunca desfez as malas. Vamos por aí meio assustados, uma mão na frente e outra atrás, a desconfiança no canto dos olhos, esperando a bala perdida, o sequestro relâmpago, a enchente, o insulto.

Quando surge, portanto, um "ei, amigo, p'favor", não encaramos co-mo um desvio na organização, um imprevisto atrapalhando nosso bem traçado plano. É o contrário: uma proposta de parceria no meio desta barafunda. Um ponto de inflexão no desmantelo.

Enquanto estamos ali, dizendo ou ouvindo "direita", "esquerda", "segundo farol, faz o contorno", abrimos uma tênue brecha na guerra de todos contra todos, escrevemos, por linhas tortas, um rascunho de contrato social.

Se tudo der certo e minha sociologia de botequim estiver correta, não está longe o dia em que o brasileiro, bem alimentado, educado, assistido e organizado, deixará de dar informações com tanto júbilo. Não lamentemos. Talvez a perda da espontaneidade seja um efeito colateral inseparável do desenvolvimento, e é aceitável um pouco de mau-humor, se cada um puder escolher o seu próprio caminho.

antonioprata.folha@uol.com.br

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