sábado, 4 de junho de 2011



04 de junho de 2011 | N° 16720
CLÁUDIA LAITANO


Vozes do silêncio

É um pesadelo relativamente comum. Você precisa falar para resolver um impasse, esclarecer um mal-entendido, salvar alguém de uma situação perigosa, e a voz não sai. O silêncio torna-se pesado, sufocante, e a pessoa acorda angustiada, com a frase não dita ainda ressoando na memória.

Compartilhamos pesadelos desse tipo provavelmente porque a sensação de não conseguir se comunicar não é estranha a ninguém. Não é preciso viajar para um país estrangeiro com língua e alfabeto estranhos para entender essa experiência. Mesmo entre conhecidos, a comunicação eventualmente falha ou é imperfeita.

Agora, imagine que essa incomunicabilidade não seja metafórica ou transitória, mas uma contingência física incontornável. Como se sente uma pessoa que perde a habilidade de falar? O que significa a fala para a identidade de uma pessoa, para a maneira como ela se vê e é vista pelos outros?

Uma dramática coincidência fez com que dois conhecidos jornalistas, o crítico de cinema americano Roger Ebert, 68 anos, e o ensaísta britânico Christopher Hitchens, 62, ambos reconhecidos pela eloquência com que sempre expressaram suas opiniões, viessem a público, mais ou menos ao mesmo tempo, para narrar a experiência brutal de perder a voz.

Hitchens, que esteve no seminário Fronteiras do Pensamento em 2007, foi diagnosticado no ano passado com um tipo agressivo de câncer no esôfago. Nos últimos meses, tem compartilhado corajosamente com os leitores da revista Vanity Fair cada etapa da doença – como um repórter enviado para uma zona de guerra da qual poucos saem vivos ou com disposição para contar o que viram. Como jornalista, Hitchens sempre foi ousado e polêmico.

Chegou a submeter-se a uma sessão de tortura para narrar a experiência. Diante do câncer, não tem sido menos atrevido. Mas nenhum texto seu sobre a doença foi tão dolorido quanto este último em que descreve a perda da fala. “Ficar sem a habilidade de falar é como ver amputada uma parte da inteligência”, diz Hitchens. “Eu era a minha voz”.

Roger Ebert, um dos críticos de cinema mais populares do mundo, não pode falar, beber ou comer desde 2006, quando fez uma cirurgia para extirpar um câncer na mandíbula.Um sorriso triste e perturbador ficou congelado no seu rosto para sempre. A ausência de voz, no entanto, não reduziu seu ritmo de trabalho. Nos últimos anos, a tecnologia tornou-se sua aliada no desafio de continuar se comunicando – via blog, e-mail, Twitter e Facebook.

O computador assumiu, literalmente, o papel das suas cordas vocais, e hoje ele usa um programa de voz digitalizada para conversar. “Há um segundo cósmico atrás, num mundo sem computadores, eu estaria isolado”, diz Ebert, comemorando os avanços tecnológicos que testemunhou ao longo da vida.

“Posso estar parecido com o Fantasma da Ópera, mas o que você vê, não é o que eu sou.” Atrás daquele sorriso triste, existe um homem agarrado à vida na forma em que ela for possível.

Hitchens e Ebert perderam a voz para sempre, mas só um deles parece ter perdido também a esperança.

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