quarta-feira, 11 de março de 2009



Cada abismo é o reverso de uma montanha

Alice, eternamente curiosa e menina, já demonstrou que tudo neste mundo tem dois lados, anverso e reverso, até mesmo o espelho com seus enganosos reflexos. E muito tempo antes dessa Alice ter visitado aquela assustadora Terra de Maravilhas, um pensador egípcio chamado Hermes Trimegistos já afirmava: “O que está embaixo é como o que está em cima”.

Cada um e tudo, portanto, tem o seu par oposto; o universo é inteiramente alinhavado com incontáveis pares de opostos: Luz e Escuridão, Cheio e Vazio, Leve e Pesado, Dentro e Fora, Princípio e Fim, Bem e Mal, Sim e Não... Interessante é que, segundo os sábios patriarcas chineses, anverso e reverso compõem uma coisa só, única, proveniente de um mesmo lugar: “Todos os pares de opostos vêm da Grande Mente Búdica” — ensinava Seng Ts’an, o venerando mestre Zen.

E completava com um conselho: “Aceita com dócil resignação a existência dos opostos!” Ah... precisamos aceitar, eu sei, mas é tão imensamente difícil aceitar os antagonismos que nos ferem ou perturbam! Escolho, então, partir da afirmação de Hermes Trimegistos, para depois tentar chegar à serena aceitação aconselhada pelo mestre Seng Ts’an. Primeiramente vou considerar que todas as perdições são o reverso de todos os encontros; todo o ódio humano é o reverso do amor mais sublime, todo abismo é o reverso de uma montanha.

Inacreditável, mas analisando dessa forma agora, tudo parece ter ficado um pouco mais claro, mais atingível e consolador. Se Luz e Escuridão são inseparáveis pares de opostos... estando eu mergulhado em sombras, não seria tão inteligente de minha parte tentar dissolver diretamente essas sombras, e sim eu mesmo mudar-me para o outro lado, para o lado oposto — como o fez a atrevida Alice ao cair de boca em Wonderland. Dissolver a escuridão, ainda que fosse possível, daria muito trabalho e levaria um tempo absurdo!

Também e além disso, bastaria que uma mãozinha safada apertasse um botão de computador, ou soprasse minha vela de chama bruxuleante, para que a escuridão voltasse a reinar em mim, soberana. Melhor, bem melhor, a alternativa da mudança de lado... Porém surge agora mais um problema: os sábios mestres Zen também afirmam que se fiar nos movimentos é entregar-se a uma ilusão; a quietude absoluta da mente seria o único caminho perfeito (verdadeiro) para a Felicidade, para a Iluminação. É... quando se pensa ter agarrado a solução correta...

Ah! Mas um momento! Lembro-me agora do exemplo contido na história do próprio príncipe Siddartha, o Buda... Vivia ele deitado em rosas, tratado a mel e beijos, protegido de todo o mal, no entanto era infeliz dentro de si mesmo. Tinha bela esposa, um filho recém-nascido, mas continuava infeliz dentro de si mesmo.

Então o que ele fez? Moveu-se. Abandonou todo o luxo e toda a proteção do palácio real, vestiu roupas as mais simples possíveis e partiu em busca da sua paz interior. Epa!!! Se Buda serviu-se do movimento para alcançar a quietude, a Iluminação... quem sou eu para tentar fazer de modo diferente?

Claro vai ficando e bem mais nítido enfim, as brumas começam a dissipar-se diante dos meus olhos... Sim, parece que estou sentindo aquela coisa esquisita que sentia Santo Agostinho toda vez que ficava a um milímetro de concluir algo muito importante.

Preciso aceitar a existência dos abismos (não cair dentro deles) para que eles me revelem o seu anverso: as montanhas a que estão diretamente ligados! Preciso aceitar as minhas sombras, para que elas me revelem o seu anverso: as luzes a que estão diretamente ligadas.

Assim preciso aceitar meus conflitos, para que eles me revelem o seu anverso: a serenidade a que estão diretamente ligados... Movimento (Ação) é necessário, sim, ao menos foi necessário na busca de Buda.

Movimento não é finalidade, originalmente, é apenas um meio, mas Buda não o dispensou. Depois do movimento, quem sabe cheguemos ao mais importante...

Obviamente valei-me, meu perseverante Santo Agostinho, com sua filosofia, sua esperança e sua fé... Acho que, afinal, a palavra salvadora tem nove letras, um rabicho e um telhadinho: ACEITAÇÃO!

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