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sábado, 7 de março de 2009
07 de março de 2009
N° 15900 - CLÁUDIA LAITANO
A lei dos homens
Para salvar o próprio pescoço, Galileu (1564 – 1642) topou se retratar diante do tribunal da Inquisição. Prometeu também nunca mais sustentar em público a opinião de que a Terra se movia.
Reza a lenda que, ao se afastar da mesa onde assinou a retratação, alguém ouviu o cientista murmurando baixinho, em uma espécie de desagravo íntimo à própria inteligência: “Mas ela se move mesmo assim”.
O prontuário de equívocos da Igreja Católica é vasto e eclético, atingindo, conforme a época, áreas que vão da origem das estrelas às células embrionárias. Mas não é toda hora que se assiste a uma manifestação tão espetacularmente contrária às evidências e ao bom senso quanto seria afirmar, nos dias de hoje, que a Terra está no centro do Universo.
É mais ou menos desse porte a ofensa à razão do arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, que excomungou a mãe da menina de nove anos que estava grávida de gêmeos e a equipe médica que realizou o procedimento de curetagem.
(Imagino que a menina deve ter sido poupada do castigo porque, aos nove anos, ainda não tem idade para ter feito a primeira comunhão.
Já o homem que a estuprava desde os seis anos não foi excomungado porque seu crime, na visão do arcebispo, não era para tanto: “Ele cometeu um crime enorme, mas não está incluído na excomunhão”, afirmou ontem.)
Em 2009, o risco de que a mãe ou os médicos excomungados sejam queimados vivos na fogueira da Inquisição é pequeno. Ao contrário de Galileu, a equipe médica pernambucana pode se dar ao luxo de preocupar-se mais com a própria consciência do que com a punição divina ou eclesiástica: “Graças a Deus estou no rol dos excomungados”, provocou a diretora do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), Fátima Maia.
Na verdade, para todos os não-católicos, é uma tentação quase irresistível descartar a condenação do arcebispo como um delírio inofensivo, uma punição esdrúxula sem consequências para ninguém, a não ser para a imagem da própria igreja diante de seus fiéis.
Mas talvez o Brasil não possa se dar ao luxo de considerar o gesto do arcebispo como um episódio isolado no tratamento da questão do aborto.
A palavra “excomunhão”, com toda a carga de condenação moral que carrega, pode assustar os espíritos justos e sensíveis que imaginam que a gravidez de uma menina de nove anos já é trágica o suficiente sem que sejam lançados contra os envolvidos anátemas religiosos.
Mas o fato é que o Brasil, mesmo nas poucas situações em que o aborto é permitido por lei, faz pior do que excomungar as mulheres – em geral pobres e com pouco acesso à informação sobre os seus direitos – que decidem pedir ajuda da lei para interromper uma gravidez.
O processo se parece mais com uma longa e dolorosa via-crúcis, em que pessoas já marcadas pela violência de um estupro ou pela dor de carregarem um feto que não vai sobreviver ao nascimento são obrigadas a enfrentar o descaso, a descrença ou a indiferença do Estado.
Amanhã é o Dia Internacional das Mulheres, data em que tradicionalmente ganhamos flores e bombons e recebemos muitos e-mails gentis celebrando nossa “condição feminina”. Nada contra.
Mas esse também poderia ser um bom dia para lembrarmos que a descriminalização do aborto – ou seja, tirar da esfera penal um problema que é antes de mais nada de saúde pública – é uma causa pela qual todas nós, brasileiras bem alimentadas, deveríamos estar lutando.
Se até a Terra se move contra a vontade da igreja, com as leis dos homens não pode ser tão difícil assim.
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