quarta-feira, 4 de março de 2009



04 de março de 2009
N° 15897 - PAULO SANT’ANA


Nem um só inocente pode estar preso

Assisti até as 5h de ontem, pela televisão, à reprodução em videoteipe da sessão histórica do Supremo Tribunal Federal que, na análise de um habeas corpus, terminou por declarar que tem direito à liberdade todo réu que não estiver condenado definitivamente.

Ou seja, tem direito a responder em liberdade o réu que tiver sido condenado em processo em que ainda caiba recurso.

Ainda, tem direito a responder processo em liberdade o réu sobre o qual haja a presunção de inocência ou presunção de não-culpabilidade.

Assisti embevecido com a aula de Direito Penal que me transmitiram os votos de todos os ministros, vencidos os que eram favoráveis a que seja efetuado o início da execução da pena quando da sentença condenatória em segunda instância e vencedores os que entenderam que não se pode privar da liberdade os réus que não viram ainda transitada em julgado a sua sentença condenatória, isto é, aqueles sobre cuja pena há ainda recurso disponível.

Aula de Direito Penal. Inspiradora, para quem assistiu a ela, de vontade e entusiasmo pelo estudo do Direito, pelo aprofundamento na ciência do Direito!

Tudo muito bonito, mas na teoria. Porque no último voto dos ministros, o presidente do Supremo Tribunal, Gilmar Mendes, revelou a que ponto chega a ilegalidade nos porões da apuração penal: dos 450 mil presos nas cadeias brasileiras, 189 mil deles, cerca de 40% do total, vegetam nos cárceres em prisão provisória, à espera de decisão da Justiça sobre seus processos.

E pasmem sobre os tempos medievais e de sombras que permeiam a persecução penal no Brasil: há réus presos há mais de três anos nas cadeias brasileiras sem que sequer tenham sido alvo de denúncia do Ministério Público, isto é, sem pronúncia de juízes.

Põe prisão provisória nisso. Mais que provisória, ilegal; mais que ilegal, repito, medieval.

Um preso sem denúncia contra si é um preso de lastimável excentricidade: porque ele não tem como defender-se de acusação que não lhe foi apresentada.

O princípio da ampla defesa é assim violado monstruosamente no início da ação penal, ou melhor, é preso por ação penal inexistente.

São 189 mil presos provisórios no Brasil. Presos por prisão em flagrante ou por prisão preventiva, cujos prazos são muito mais estreitos e rígidos que os três anos – e às vezes quatro anos – em que estão presos.

É uma questão gravíssima. Porque um dos bens mais preciosos dos direitos humanos é a liberdade.

E era isso o que o Supremo examinava: como se pode manter presa uma pessoa, sob a morosidade da Justiça e do processo penal, quando ela está abrigada na égide da presunção da inocência, a não ser nos casos em que há justificada necessidade de sua prisão?

Como podem ser mantidos quase 200 mil presos em prisão provisória em mais de três anos, se mais tarde eles podem vir a ser absolvidos e pairará sombriamente sobre suas mentes e seus corpos o fantasma da irreparabilidade da injustiça que sofreram?

Sei e não posso deixar de considerar que a grande maioria desses presos se constitui de ladrões, traficantes, estupradores etc.

Mas sei e não posso deixar de considerar que muitos desses 189 mil presos são inocentes e terão declarada sua inocência depois que seus processos se arrastarem por anos a fio.

Como, então, indenizá-los na reputação, na perda do emprego, na infamação junto à família, aos amigos e ao meio social, que a prisão lhes acarretará?

Depois da vida destruída, lhes será concedida a liberdade, mas o que farão com ela?

Senti-me mal, senti náusea quando soube que essa é a estatística da chamada prisão provisória no Brasil.

Evidentemente, a grande massa desses presos provisórios é culpada. Mas há numerosos que são inocentes.

E, como disse Cesare Beccaria, o grande penalista italiano do século 18, “o que lucra a humanidade com um só inocente condenado?”.

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