15 DE OUTUBRO DE 2022
ELIANE MARQUES
O DIABO CUIDAVA DAS FLORES
Nenhuma das flores que considerava tão suas lamentava a morte dos escravizados que ele sufocara com cal no porão do navio. Diferente deles, agora retornado à casa da família, o capitão estava em liberdade para morrer e amar suas flores. Contudo, elas eram indiferentes a seu amor - ele ou a chuva que as regava no outono, tanto fazia; viver ou morrer, tanto fazia; tanto fazia serem podadas pelo diabo ou por um jardineiro Celestino. E alguém já disse que o oposto do amor não é o ódio e sim a indiferença. Não sobrara ao capitão parente vivo. Vivas apenas as flores e a memória de algo que foi se apagando. Mas um assassino, traficante de gente escravizada, poderá amar ainda que apenas as flores plantadas para seu próprio túmulo?
Suponho que, se indiferentes ao amor de Celestino, as plantas não eram indiferentes à escravidão que lhes impunha o então traficante. Quando da morte dele e alforria delas, o plano era o de iniciarem a tomada da casa como antes os escravizados haviam iniciado a rebelião para a tomada do navio. Eles malograram sufocados no porão, mas elas estariam livres no pátio da casa do morto que cavara sua própria cova. Não precisariam lutar. Sua revolta vinha se formulando de "mansinho".
A casa e seu herdeiro estavam decadentes no padecimento de suas penas. Ambos se faziam habitar por craveiros, ameixeiras, roseiras... cujo objetivo consistia em apagar a memória da vida humana que um dia ali tinha habitado - pai e mãe, talvez tios e irmãos, serviçais, talvez uma ou outra gente escravizada. Mas a casa e o herdeiro também se faziam habitar por fantasmas - a menina holandesa que cuidou de Celestino durante uma de suas febres na África, abandonada de olhos vendados depois que ele assassinou os integrantes do grupo dela; a mulher negra que ele atirou num navio no Atlântico e depois jogou o corpo chicoteado ao mar.
Um dia, o capitão Celestino foi visitado pelo padre Alfredo, que o queria levar à Igreja para se confessar. A confissão implica "fala". Mas Celestino desejava matar e não falar; quando muito, dizia algo às suas flores ou às crianças que haviam perdido o medo dele. Quem passou grande parte da vida ocupado com a tarefa da morte de outros agora se ocupava com a vida que também não era sua. Feito um deus ocidentocêntrico e seus sucedâneos mundanos, Celestino continuava decidindo quem deveria viver e quem deveria morrer por suas próprias mãos de jardineiro. Com essas mãos, matou macacos, cavalos, serpentes, vespas, um elefante, um crocodilo do tamanho de uma jangada, matou 10 mulheres, de uma delas cortou os pés, matou centenas de sonhos e de gente com essas mãos. E elas não lhe caíram.
Se as plantas se sentiam cativas de Celestino, ele se sentia cativo delas. O mar o cuspira para a terra, mas zombava dele, domesticando-o, enjaulando-o num jardim cujas hostes preparavam a rebelião próxima. Essa é uma das várias dimensões do livro A Visão das Plantas (Editora Todavia), da escritora angolana Djaimilia de Almeida Pereira. A pena vale!
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