quarta-feira, 28 de abril de 2010



28 de abril de 2010 | N° 16319
DAVID COIMBRA


Os que são só vestígio

Os espartanos, soldados forjados desde a infância na austeridade e na aspereza, quando os espartanos resolviam beber de verdade, beber como homens, diziam que iam beber vinho “à maneira cita”. Porque os citas bebiam vinho puro, ao contrário dos gregos, que o misturavam com água. Claro, o vinho grego não era como o feito em Bento. Era marrom, mais denso, mais capitoso. Compreensível que os gregos o diluíssem.

Compreensível também que os citas o bebessem como os caubóis bebiam uísque: puro. Porque os citas eram durões, sim, senhor. Guerreavam por gosto, eram cruéis por hábito. Desenvolveram a desagradável mania de furar os olhos dos escravos. Não raro, esfolavam seus inimigos vivos, e ser esfolado vivo dói.

Se o inimigo tivesse sorte, o decapitavam, descarnavam-lhe a cabeça e serravam a caveira à altura das sobrancelhas. O tampo do crânio servia-lhes de tigela nas refeições. Se você fosse jantar na casa de um cita, seria de bom-tom perguntar na cabeça de quem estava comendo.

Os citas eram arqueiros e cavaleiros famosos no mundo antigo. Volta e meia lutavam a soldo, como mercenários. Eram nômades, não cultivavam a terra, mas criavam gado sobretudo pelo leite das vacas.

Tirado o leite, derramavam-no em um pote e mandavam um daqueles escravos cegos sacudi-lo até que o líquido se transformasse em nata pastosa. Os citas adoravam nata, mas não a serviam com moranguinhos, uma lástima. Falavam uma língua de cepa iraniana e vagavam em bandos ferozes entre as terras russas e o Oriente Médio.

Heródoto, em uma de suas viagens de conhecimento, esteve entre os citas que viviam às margens do Rio Dnieper, um rio de águas límpidas e, segundo o próprio Heródoto, muito saborosas. Contou a respeito deles uma história curiosa. Por algum motivo, esses citas marcharam para fora de seus domínios para fazer guerra aos medos.

Os medos tinham esse nome não porque não fossem valentes, mas porque se originavam da Média, que, por sua vez, tinha esse nome não porque ficasse em um ponto equidistante de qualquer coisa, mas porque, bem, porque esse era seu nome.

Os citas demoraram 28 anos para derrotar os medos, um povo muito resistente. Quando voltaram para casa, tiveram uma péssima surpresa, descrita assim por Heródoto: “Suas mulheres, entediadas pela longa espera, entregaram-se aos escravos, daí resultando toda uma nova população”.

Infiéis, aquelas citas! Não procederam como a grega Penélope, que durante 20 anos manteve-se intocada, aguardando a volta de Ulisses, que devia ser um galo cinza. Não. Na falta de homem, as citas fogosas requisitaram os escravos e se refocilaram com eles. Esses escravos sortudos eram cegos, mas seus filhos não. E foram os filhos que se postaram diante das muralhas da cidade para combater os citas de retorno.

A luta contra os filhos das suas mulheres foi ainda mais encanzinada para os citas do que a travada com os medos. Por pouco eles não foram derrotados. Só venceram porque um comandante gritou:

– Vocês não estão vendo que lutamos contra escravos e filhos de escravos??? Apanhem seus chicotes e marchem contra eles agindo como os senhores que são!!!

Foi o que os citas fizeram. Caminharam com autoridade contra os rebeldes, que se assustaram ante tamanha ousadia e puseram-se a correr.

O que se depreende da história narrada por Heródoto?

Que não existe ninguém insubstituível.

Se você ficar muito tempo longe do seu lugar, quando voltar pode encontrá-lo ocupado. Caso da lateral-esquerda do Grêmio e da centroavância do Inter. Os titulares não deram conta, Neuton e Walter estão suprindo as necessidades, e muito bem. Mais um pouco e só uma guerra para tirá-los de onde estão.

Imagino que os citas não tenham aprendido com o episódio, porque, 200 ou 300 anos depois de Heródoto, eles desapareceram da face da Terra. Não deixaram nada escrito, não deixaram descendência aparente ou cultura que cultivar.

Os citas hoje não são nem lembrança, são apenas vestígio. Tanto quanto são na vida os antigos amores, os desafetos do passado, as dores curadas e alguns ex-titulares da Dupla Gre-Nal.

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