sábado, 17 de abril de 2010



18 de abril de 2010 | N° 16309
MOACYR SCLIAR


Os projetos na gaveta

Todos temos, em nossas gavetas, uma pasta com fragmentos de papel em que garatujamos algo que poderia ser a fórmula de nossa felicidade

Tenho, numa gaveta, uma pasta de cartolina na qual escrevi Ideias. Seu conteúdo: folhas de papel, dos mais variados tamanhos e formatos, incluindo bloquinhos de anotações de hotel, convites para eventos e lançamentos de livros (um destes de minha autoria), folhetos de propaganda.

Em todas essas folhas há algo rabiscado: as ideias. Ideias para contos, ideias para crônicas, ideias para livros até. Ideias em profusão, ideias que ao longo do tempo me iam ocorrendo e que eu, como tantos que escrevem, anotava para posteriormente desenvolvê-las. O que, na imensa maioria dos casos, nunca aconteceu. E isso por várias razões.

Para começar, em muitos casos não consigo entender o que escrevi. Em parte isso resulta da famosa letra de médico, uma situação que, a propósito, não deixa de ser intrigante: de onde viria essa fama de clássica ilegibilidade? Da pressa com que os doutores, sempre lutando com a falta de tempo, escrevem?

Ou seria uma curiosa manifestação de poder, tipo “decifra-me ou te devoro”, como dizia a esfinge na história de Édipo? Ou simples desleixo? Mistério, mas de qualquer maneira, uma questão à parte, mesmo porque, além desse componente, digamos, profissional, pesavam as circunstâncias em que as mensagens eram escritas: num carro sacolejante, por exemplo. Ou no meio da noite, os olhos fechando de sono.

Como se isso não bastasse, mesmo legíveis, as anotações revelam-se crípticas, misteriosas. Citando ao acaso: “A frase no sonho”, “Inventário das dores”, “Catastróficos e deslumbrados”, “Ator morre antecipando a morte”, “Se Deus se materializasse”, “História do cirurgião que inventa uma operação maravilhosa”, “Foi melhor assim”.

Vamos ficar só com estas duas últimas. “História do cirurgião que inventa uma operação maravilhosa”. Que operação seria essa? Que doença ela curava, que problema resolvia? E o que acontecia, então?

Perguntas intrigantes. Mas “Foi melhor assim” é, em matéria de enigma, ainda pior. “Foi melhor assim” – o quê? De que fala, essa frase? A quem se refere? Que história ela resume?

Todas estas anotações têm uma coisa em comum: são projetos que não decolaram. Por quê? Porque não tinham em si próprios a carga criativa suficiente para impô-los a seu próprio autor? Porque tornaram-se incompreensíveis?

Estas coisas envolvem um grau de mistério que não é pequeno. E aludem a esse aspecto característico da condição humana: todos temos sonhos não realizados, objetivos não atingidos.

Todos temos, em nossas gavetas, uma pasta com fragmentos de papel em que garatujamos apressadamente algo que certamente poderia ser a fórmula de nossa própria felicidade. Ah, se ao menos lembrássemos o que ali escrevemos. Se ao menos entendêssemos nossa própria letra.

Agradeço as mensagens de Leandro Alves Pereira, Vera Maria Martini, dr. Marco Jesus, Nelmo Roque Ten Kathen, dr. Fernando Luiz Brauner.

O juiz Adair Philippsen cumprimenta pela crônica que escrevi sobre o crack e manda um poema a respeito, que diz: “Tire pedras do caminho/ sem juntar as do fosso”. Mensagem simbólica e significativa. Um especial muito obrigado à fiel leitora Maria Andrade Brux, que acompanha há tempos esta coluna.

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