terça-feira, 20 de abril de 2010



20 de abril de 2010 | N° 16311
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Paz e serenidade

Algumas pessoas têm de companhia um canário, um poodle, desilusões de amor. Eu sou acompanhado por um par de cadeiras ancestrais.

Quando era bem jovem, na casa de Cachoeira, por vezes, tão grande era o número de hóspedes no verão, que eu era obrigado a dormir na sala de estar. Vêm daí as lembranças mais nítidas das cadeiras.

Numa antevéspera de Natal, mal-acomodado numa cama de armar e vizinhando com a espada de meu antepassado Manuel Carvalho de Aragão, simplesmente não conseguia dormir. Era como se aquela espada, que tomara parte, vitoriosa, em tantas batalhas da Guerra dos Farrapos, estivesse ali para me assombrar.

Só descansei quando me dei conta da presença tranquila das cadeiras centenárias. Sua real majestade, suas linhas fortes e ao mesmo tempo elegantes, suas caprichosas esculturas transmitiam um recado de paz e serenidade. Olhando-as, na semi-obscuridade da peça, sentia-me possuído de tranquilidade e de repente liberto do espectro da espada que despachara tantos deste para outros mundos.

A origem dessas cadeiras é incerta. Quando meu avô Achylles comprou a Granja da Penha, descobriu que o antiquíssimo galpão abrigava mais do que arreios, lamparinas, fogos-fátuos.

Havia um rol de trastes caseiros, alguns devorados pelos cupins, outros de metal, mas sem prestança, ainda terceiros devastados pelas idades.

E havia as duas cadeiras que, embora em péssimo estado, mas com a madeira intacta, podiam ser submetidas a uma restauração. Foi o que o meu avô mandou fazer, com notáveis resultados.

Um honesto artesão transformou curvas e estofos, longamente abandonados, em esplêndidas peças de decoração. Desde então ambas habitaram a sala de visitas da casa de Cachoeira, com uma cláusula pétrea. Quando meu avô se mudasse desta para melhor, as cadeiras passariam a me pertencer.

E foi o que aconteceu. Seu filho Nilson, um caro amigo meu que partiu há pouco, depositário circunstancial dos móveis, enviou-os para mim. Aqui estão eles, bem no momento em que escrevo, fitando-me com sua majestade.

É a segunda vez que uso esse substantivo feminino, e não por acaso. Ocorre que essas duas cadeiras devem ter abrigado muitas lindíssimas princesas, talvez de cabelos negros e olhos claros, e são elas que me observam desde as planuras da eternidade.

Uma linda terça-feira pra você. Aproveite o dia

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