Cotoneteira anônima
Podem faltar café, arroz, papel higiênico, mas não cotonete em casa. Minha esposa é dependente química do cotonete. Cotonete é o seu grande momento pós-banho. Melhor do que o ventinho quente do secador. Melhor do que o demorado cuidado da maquiagem. Melhor do que o bem-bom do hidratante na pele macia.
É seu instante sublime de regozijo, de calma, de paz nirvânica. Ela até fecha a porta para não ser incomodada. Como se fosse um ato solitário, egoísta, proibido. O casamento não vigora nesta hora.
Com as orelhas levemente úmidas, ela se inclina para acarinhar a concha acústica, o pavilhão do som, o seu salão do mundo. Integra um grupo seleto e apaixonado que sente prazer em cutucar o inefável. Eu diria que ela é uma cotoneteira anônima. Não é apenas capricho, mas vício mesmo.
Algumas vezes, cheguei a pensar que ela precisava ser otorrinolaringologista. Porque também adora espiar o estado das minhas cartilagens quando estou no seu colo amistosamente, distraidamente. Acho que ela só me oferece colo para satisfazer suas segundas intenções. É bobear com um cochilo que ela põe a lanterna do celular sobre os meus segredos auriculares.
Sofre de pânico pela possível ausência do item. Depois de sua passagem no supermercado, o estoquista se vê obrigado a fazer reposição. Ela esconde caixinhas em gavetas nos banheiros, carrega adicionais na mochila e na bolsa, para jamais ser pega desprevenida com um último palitinho azul.
Quem diria que uma ponta inofensiva e ingênua de algodão exerceria tamanha influência numa personalidade marcada por austeridade e opiniões firmes. Cotonete manda mais do que a fome ou a sede.
Já expliquei que ela anda flertando com o perigo. Sugeri que procurasse a segunda opinião de um especialista, que recorresse a um tratamento para inibir suas vontades súbitas, que passasse um tempo numa clínica de desintoxicação.
Já repeti que o corpo é sábio e a limpeza acontece de forma natural, quando o próprio ouvido se encarrega de eliminar a sujeira, evitando poeira ou grãos de areia. Já mostrei dados e estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Já dei aula sobre o papel protetor e estratégico da cera, impedindo que partículas exteriores acessem o canal auditivo. Já argumentei que o cotonete deve ser usado rara e parcimoniosamente, sob orientação médica. Já bradei que as hastes flexíveis, com o emprego contínuo e prolongado, têm a tendência de empurrar a cera na direção do tímpano. O risco é obstruir o canal auditivo.
Mas ela não me escuta, não sei se por teimosia ou pelos efeitos colaterais do produto. O cotonete cala qualquer recomendação, conselho, tutorial do YouTube. É o ponto alto do asseio, a sobremesa da higiene. Sou voto vencido. Não tem como lutar contra o alívio irresistível da comichão.
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