segunda-feira, 4 de dezembro de 2023


04 DE DEZEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

A cidade como mundo, ou o mundo como cidade

Minha infância não foi globalizada. Não havia internet, redes sociais, celular. Eu mal saía do meu bairro. Minha experiência pode parecer tacanha à nova geração, que se desloca para longe desde o berço, que fala com gente de qualquer parte, que tem o inglês como um segundo idioma básico.

Mas não troco meu conhecimento de chão por um passaporte totalmente carimbado. Eu ainda prefiro ter a cidade como meu mundo a ter o mundo como cidade, diferentemente de quem nasceu depois dos anos 2000.

Hoje você tem mais facilidades de adaptação, de comunicação, de locomoção. Só que não sossega num lugar fixo. Não tem um lugar sagrado, uma residência definitiva. Não conhece sua cidade "como quem examinasse a anatomia de um corpo", para lembrar verso emblemático de Mario Quintana.

Você é de todos os lugares, e um turista do seu berço natal. Não se apegou à atmosfera de um parque ou de uma praça. Não treinou a falta. Não gritou "cheguei" abrindo a porta de casa. Não sofreu picos de nostalgia com uma mudança. Não chorou por um amor perdido. Não suspirou pela primavera das árvores mudando a cor da calçada e dos passos com suas folhas alaranjadas. Não namorou no drive-in da Orla, com o sol descendo na tela do Guaíba.

Troca de endereço com desembaraço, aceita empregos distantes sem crise de consciência, realiza intercâmbios com a adrenalina do desafio. Suas relações são do momento, para o momento, absolutamente circunstanciais. O presente tem a dinâmica de stories, durando 24 horas. Termina romance apartado da fossa e do medo de jamais ver a pessoa. O passado não pesa. O guarda-roupa mora nas malas.

Não vou cometer o crime da vaidade e da velhice de dizer que no meu tempo era melhor. Balbucio na hora de explicar para a linhagem digital a minha época de formação, até meu vocabulário é arcaico.

Posso garantir que ela era sentimental e exclusivamente presencial. Não se faziam contatos na distância. O amor platônico acontecia pelo vizinho ou vizinha, ali na janela paralela do mesmo prédio, jamais por alguém de outro país.

Não troco o meu passado por nenhum novo futuro. Eu tinha o principal, uma tecnologia que não existe mais: a tecnologia dos amigos para a vida inteira.

Cultivava a turma da rua, a turma da escola, a turma do futebol, a turma dos primos e tios. Dificilmente me mantinha sozinho. Não padecia de ansiedade e de pânico - esses sentimentos gigantes do desenraizamento.

Na infância e na adolescência, nunca pisei fora do Estado. Em compensação, demonstrava intimidade com cada vão, cada brecha, cada palmo, cada esquina, cada terreno baldio da redondeza. Sabia de cor os becos, as ruas sem saída, as escadarias que serviam de atalho entre os quarteirões.

Quando sou obrigado a viajar, eu quero sempre voltar. A saudade é maior do que a aventura. Talvez a saudade seja a minha mais fremente aventura.

Não consigo ficar longe da minha churrasqueira, da minha varanda, da minha biblioteca, das minhas plantas, do fardamento das manhãs, da minha cama, dos afetos que frequentam o meu lar desde criança. Tenho uma possessividade provinciana. Minha alma é incuravelmente bairrista.

CARPINEJAR

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