sábado, 2 de dezembro de 2023


02 DE DEZEMBRO DE 2023
FRANCISCO MARSHALL

BACO E LORENZO APÓS A PESTE

A grande peste do século XIV promoveu duas mudanças sociais decisivas rumo à aurora da modernidade, no Renascimento dos séculos XV e XVI. Por um lado, o desencanto com os poderes divinos, que falharam na oferta de cura e salvação; cerca de metade da população da Europa morreu entre 1345 e 1354, e entre os que sobreviveram cresceu um sentimento de amor à vida, inclinado a comportamentos emancipados, eventualmente céticos e mesmo pagãos.

Disso dão testemunho os poemas de Francesco Petrarca (1304-1374) e a prosa picaresca de Giovanni Boccaccio (1313-1375), no caminho de uma nova moralidade, que incluiu sexualidade menos reprimida e bastante curiosidade mística. A segunda grande consequência da peste foi o processo de reconstrução econômica, no qual despontou o ramo bancário, negócio do bisavô de Lorenzo, Giovanni de Medici (1360-1429), que se tornou um dos homens mais ricos do planeta. 

Giovanni educou seu filho Cosimo (1389-1464) para viver com relativa simplicidade e atuar em favor da comunidade, com filantropia humanista. Deste modo, em que pesem as contradições inerentes à concentração de riqueza, deu-se a conjunção fecunda entre fortaleza econômica e motivação ética e cultural, com a qual floresceu a cidade que já tem flor no nome, Firenze, e se renovou a humanidade.

Lorenzo de Medici (1449-1492) foi herdeiro não apenas do banco e demais negócios, e do prestígio político local e internacional, mas também de valores arte-humanísticos máximos, estimulados por seu avô Cosimo e cimentados com os conhecimentos e atitudes de seu tutor, Marsilio Ficino (1433-1499), um dos mais importantes intelectuais dos últimos séculos. 

Com a liderança de Ficino, os Medici ofereceram a jovens artistas em Firenze o alimento cultural, a confiança e as motivações para produzirem obras-primas que até hoje nos encantam. A leitura de Platão era tema predileto, sobretudo suas teses sobre o amor, apresentadas no diálogo O Banquete, em um contexto de redescoberta de obras fundamentais, de novas tecnologias do livro e de crescente entusiasmo pelo poder transformador da imagem, da leitura e da cultura clássica. 

Na biblioteca que então se formou, despontavam obras dos filósofos Aristóteles, Epicuro e Plotino, do arquiteto urbanista Vitrúvio, de Plínio o Velho e sua História Natural, de poetas gregos, como Homero, Safo e Píndaro, e latinos, como Horácio e Ovídio, e, especialmente, do poeta estoico latino Tito Lucrécio Caro, autor do célebre De Rerum Natura, cuja descoberta por Poggio Bracciolini (1380-1459), em 1417, bem apresentada por Stephen Greenblatt em A Virada (2011), decidiu o destino da modernidade.

Entre os feitos culturais de Lorenzo, esteve a promoção do culto de Baco em Firenze, inclusive com festas populares pelas ruas da cidade, regadas a bom vinho, ocasião em que criou os carros alegóricos, que hoje dão movimento à principal festa brasileira. Escreveu também muitos poemas carnavalescos (Canti Carnascialeschi), sendo o principal a Canção de Baco, uma ode embalada pelo estribilho epícureo "quem quiser ser feliz, que seja/ do amanhã não há certeza".

FRANCISCO MARSHALL

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