07 DE FEVEREIRO DE 2020
CLÁUDIA LAITANO INTERINA
Horizontes
Moro no Mont' Serrat, no quarto andar de um edifício cercado de edifícios por todos os lados. Ainda assim, por uma combinação espantosa de localização, topografia e sorte, avisto ao longe uma nesguinha de Guaíba.
É um quase nada de água, um borrão na borda do céu que as visitas em geral demoram a reconhecer, mas um anúncio que descrevesse a paisagem como uma "vista privilegiada" não estaria sendo totalmente exagerado ou desonesto - menos pela vaga ideia de rio que se insinua ao longe do que pela sensação de um horizonte aberto convidando à contemplação.
É mesmo um privilégio o horizonte. Na praia, na estrada, na cidade pequena, no topo de uma montanha. Na janela de casa, é um luxo que sempre me esforcei para merecer. Numa terça-feira opaca de um fevereiro qualquer, quando nada de especialmente ruim ou bom aconteceu ou está para acontecer, olhar para a linha que separa o céu da superfície me acalma e me situa. Por alguns minutos, não importam a intranquilidade da cidade ou a minha, o barulho do trânsito, a música alta de um vizinho. Como o mar e as florestas, as montanhas e os precipícios, o horizonte impõe sua profundidade ao observador mais agitado e desatento. Não cura tudo, mas alivia muita coisa.
Durante os últimos 15 anos, fui me acostumando à ideia de que os horizontes, ao contrário dos diamantes, não são eternos. Era inevitável que o conjunto de casinhas que garantiu meu naco de céu e rio por tanto tempo mais cedo ou mais tarde sucumbisse à voracidade que ergue e destrói coisas belas. Durante esses 15 anos, torci para que o dono de uma das casinhas na frente do meu edifício fosse um sujeito intratável e de saúde de ferro. Alguém tão chato e indiferente a propostas milionárias que as construtoras decidissem cravar seus vergalhões em uma galáxia muito muito distante - ou pelo menos na rua do lado.
No ano passado, as casinhas finalmente começaram a vir abaixo. Os tapumes chegaram logo em seguida, estampando as comodidades do futuro condomínio e, mais importante, a altura do empreendimento: 16 andares. (Sensação térmica lá em casa: 48°C). Durante os primeiros meses, minha melancolia era maior do que o buraco que começou a crescer atrás dos tapumes. Quando as obras começaram, pensei em vender o apartamento. Não queria assistir ao massacre da paisagem. Amaldiçoei o plano diretor, as construtoras, os engenheiros, a invenção do tijolo. E aí cansei de sofrer.
Acabei chegando à conclusão de que, com ou sem vista privilegiada, eu gostava do apartamento e não ia me mudar. A vista ainda está lá, mas as fases do luto já começaram: negação, raiva, barganha, depressão. Acho que estou entrando na fase de "aceitação". Se os meus cálculos estiverem certos, não perco meu naco de pôr de sol. A árvore de quatro andares, que já morava aqui ao lado quando me mudei, promete continuar se cobrindo de amarelo durante o verão. Que venham o tapa-tudo, os novos vizinhos, a nova paisagem. Um horizonte oculto não é a mesma coisa que um horizonte curto.
Pelo menos enquanto a Terra for redonda.
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