02 DE JULHO DE 2022
J.J. CAMARGO
OS DESCARTÁVEIS
"A miséria de uma criança interessa a uma mãe, a miséria de um rapaz interessa a uma rapariga, a miséria de um velho não interessa a ninguém." (Victor Hugo)
Os médicos de verdade nunca se habituam com a ideia de atribuir naturalidade à morte simplesmente porque ela é o inevitável ocaso de todas as vidas. E muita gente passeia por aí porque em algum momento em que tudo parecia perdido alguém não desistiu.
Esta questão não é linear, mas como norma o exercício médico só será considerado maduro se no caminho desse esforço, pessoal e tecnológico, houver a perspectiva de uma vida digna. O que, evidentemente exclui aquelas situações de tratamentos fúteis, nos quais a protelação da vida é apenas um ritual de execrável crueldade. Com o paciente e sua família.
Os aspectos legais e humanitários sempre vêm à tona quando se considera a interrupção de tratamentos inócuos, muitas vezes caros e invariavelmente dolorosos.
A decisão de abandonar o tratamento só é tolerável para o médico que está convicto da irreversibilidade do quadro clínico com desfecho iminente. Sem essa convicção, a tendência lógica, e eticamente correta, é observar um pouco mais.
Em situações trágicas como grandes guerras e pandemias, há uma dramatização natural do contexto, quando as decisões sob tensão fazem de cada caso uma batalha emocional, e desencontros de opinião podem ser dramáticos e rudes, especialmente se arbitrados por estranhos que, distantes dos dramas pessoais, seguem à risca normas inflexíveis baixadas por burocratas, naturalmente despidos de qualquer resíduo de afeto.
A exposição profissional a esse tipo de exigência gerou uma enorme carga de sofrimento aos médicos que, no auge da pandemia, foram obrigados a estabelecer prioridades, quando ficou evidente que não havia hospitais, leitos, ventiladores e medicações para todos os necessitados, e então pacientes mais jovens e com melhores condições de recuperação foram priorizados.
A mortalidade, seguindo estes critérios de seleção, foi devastadora em lares de idosos, alguns deles com doenças neurológicas degenerativas, com qualidade de vida comprometida e convenientemente guardados em ambientes alheios que emprestassem um mínimo de dignidade à espera indeterminável pela complementação da morte.
Quando algum desses velhinhos adoecia, exigindo cuidados de terapia intensiva, indisponíveis nesses asilos que nem de oxigênio dispunham, o desespero tomava conta dos assistentes e voluntários que, pendurados nos telefones de emergência, rapidamente descobriam que a senha para eliminar qualquer tipo de ajuda estava na resposta à primeira pergunta: "Que idade tem o seu paciente?". Sempre seguida da promessa falsa de que a primeira ambulância disponível seria encaminhada para aquele socorro.
A banalização da morte, a sensação massacrante de que algumas delas poderiam ter sido evitadas, a pressão da imprensa por dados atualizados, o número crescente de casos, a falta de prazos definidos para alimentar a esperança, a indefinição do futuro das vacinas e a quebra diária do recorde de mortandade produziram inusitada democratização do desespero.
Para dramatizar ainda mais uma situação já completamente caótica, médicos e enfermeiras, tensos e esgotados pela exigência desumana de enfrentar plantões intermináveis, submetidos ao exercício constante da impotência, foram convocados à função de consoladores de familiares que tinham perdido seus amados, desprovidos do afeto mais elementar: o da proximidade física no fim da vida.
Quando se encontrava um técnico chorando pelo corredor, ainda havia a dúvida se esse choro era pelo sofrimento compartilhado com uma família inconsolável ou pela notícia de que um colega de plantão tinha sido entubado ou morrido, porque a peste não poupava ninguém.
Comprovando que a pandemia foi uma tragédia universal, este é o argumento de Help (2021), um filme que é o relato/denúncia das condições sub-humanas dos lares de idosos na Inglaterra, no auge da pandemia, no ano de 2020.
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