sexta-feira, 25 de janeiro de 2008



25 de janeiro de 2008
N° 15490 - David Coimbra


O salvador do Brasil

Algumas pessoas bebem hi-fi. Durante algum tempo fui uma delas, admito. Hi-fi. O garçom vai lá, mistura Fanta com vodca, larga uma pedra de gelo no copo, e pronto, dá de beber ao freguês. Repugnante.

Mas não havia opção, na época. Estávamos nos tempos do Plano Cruzado, 1986. Para burlar o congelamento de preços, os empresários faziam desaparecer latas de azeite das prateleiras, bois gordos do campo e, Cristo!, cerveja das geladeiras.

A cerveja tornou-se tão escassa quanto a virtude, os bares só vendiam uma garrafa se, junto com ela, o freguês pedisse uma porção de fritas.

Lembro-me das mesas da turma, então: os pratos de batata frita acumulando-se em pilhas de palmo e meio de altura, batatas fritas umas sobre as outras, frias, murchas, pretas, tanta batata frita, mas tanta, que as usávamos como mísseis, atirando-as nos amigos das mesas vizinhas, ou, de preferência, nos inimigos.

Caso o cliente não quisesse batata frita, o jeito era pedir hi-fi. Foi assim que ingeri centenas de litros de Fanta, em 1986. Fico pensando como isso pode ter repercutido no meu organismo e, bem, tenho medo.

O fato é que o boicote fez o Plano Cruzado gorar. Mais um plano que adernou, dos tantos urdidos para debelar a inflação. Em 1988, a inflação chegou a 80% ao mês.

Os supermercados reajustavam os preços duas vezes ao dia, os salários aumentavam de duas em duas semanas, se você andasse com 10 pilas no bolso, alguém gritava:

- Está louco??? Andar com dinheiro no bolso???

Lugar de dinheiro era no banco, em fundos que rendiam 1% ao dia. Até que surgiu o Plano Real. O Plano Real alcançou o impossível: exterminou a inflação.

Hoje, as pessoas não sabem mais como era viver naquele inferno, mas o fato é que, nos anos 80, ninguém acreditava que, um dia, o Brasil pudesse livrar-se de um Mal tão absoluto, tão poderoso, tão diabolicamente flexível.

O Plano Real conseguiu tal façanha, algo impensável, algo como o Brasil do século 21 resolver de vez o problema da violência urbana, e fazer isso em dois ou três anos.

Mas o importante, o maior ensinamento do Plano Real é a forma como se construiu sua façanha. O Plano Real foi traçado de acordo com a personalidade do brasileiro. Eis seu grande trunfo. Foi um plano concebido com nuanças psicológicas, com sabedoria e sensibilidade social.

Fosse na Suécia, o Plano Cruzado, com seus fiscais, com a sua Sunab, com o seu viés policialesco, fosse na Suécia o Cruzado teria dado certo.

Os suecos aceitariam pacificamente a imposição do congelamento, como aceitaram, por exemplo, uma lei semelhante à nefanda Lei Seca, que alguns ingenuamente propõem para o Rio Grande do Sul. Os suecos aceitariam porque os suecos acreditam no Estado.

Já o Plano Real triunfou por empregar a inteligência, nunca a força. Por imiscuir-se devagar e aos poucos na vida do brasileiro.

Primeiro com a URV, que se transformou no indexador único, até que, finalmente, indexou o próprio Real. Assim, no dia em que o Real passou a vigorar, o país inteiro estava sereno e pronto.

Hoje, o Brasil assiste à crise econômica americana de queixo erguido, o Brasil arrosta sua solidez econômica. Mas só porque um dia houve o Plano Real.

Só porque, um dia, houve Itamar Franco. Aí está um nome que ninguém cita: Itamar Franco. Um vice obscuro que se alçou ao poder por meio da deposição do presidente eleito, um folclórico, um sujeito esquisito, que usava topete e cortejava foliãs sem calcinha.

Esse Itamar Franco meio desasado, sem carisma e sem voto, salvou o Brasil. Por uma única razão: porque compreendeu a alma indulgente, à vezes permissiva e sempre branda do povo brasileiro.

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