segunda-feira, 28 de janeiro de 2008



28 de janeiro de 2008 | N° 15493
Fernando Verissimo


Com o risco de perder as orelhas

David Mamet é um escritor e diretor americano que faz peças e filmes realistas, às vezes com títulos enigmáticos, e uma boa dose de cinismo. Seus textos têm humor mas não têm piadas.

Ou não tinham, até agora. Sua última peça, November, que vimos em Nova York na semana passada, é uma comédia que Neil Simon ou Woody Allen poderiam ter assinado.

Talvez pelo fato de a ação se passar no gabinete oval da Casa Branca e ser sobre um presidente em final de mandato que todos odeiam, a tentação de fazer uma farsa era inescapável, e as piadas se sucedem.

Embora não haja nenhuma referência direta a Bush a identificação com o atual ocupante da Casa Branca é instantânea e a platéia aplaude em cena aberta todas as alusões à atualidade, como o fiasco no Iraque, as ameaças de guerra com o Irã e os baixos índices de popularidade do presidente, e todas as trapalhadas do pseudo-Bush.

Ajuda o tom de comédia farsesca o fato do presidente ser interpretado por Nathan Lane, com seu estilo de humor nada sutil.

Os textos de Mamet para o teatro até hoje requeriam do público uma certa paciência com a ambigüidade. Neste caso Mamet está
tratando com um dos poucos assuntos nacionais americanos sobre os quais nenhuma ambigüidade é possível.

Mamet não sucumbiu às piadas fáceis. É que não havia outro jeito de escrever a peça senão levando o absurdo do governo Bush ao extremo da comédia burlesca.

Na peça o assessor do presidente declara que os Estados Unidos não podem construir um muro na fronteira para impedir a entrada de mexicanos.

- Por que não? - quer saber o presidente.

- Porque precisamos dos mexicanos para construir o muro.

A platéia vem abaixo.

Duke Ellington era um pianista competente, mas dizia que seu verdadeiro instrumento era sua orquestra. Count Basie também "tocava" a sua orquestra, recorrendo ao piano apenas para esparsos comentários. Gil Evans, a mesma coisa.

O maior exemplo dessa linhagem, hoje, é a Maria Schneider, que dispensou o piano e interpreta suas composições e seus arranjos regendo sua grande orquestra, sem intermediários.

Fomos ouvi-la no Jazz Standard, em Nova York. É sensacional ver aquele fiapo de mulher arrancando o sonzão de 18 músicos com as mãos, sem precisar de chicote.

Ela, o velho McCoy Tyner tocando com o Joe Lovano no Blue Note, uma exposição do Alfredo Burri (grande abstracionista italiano) em NY, a exposição definitiva do Edward Hopper na National Gallery de Washington e a peça do Mamet mais que compensaram o risco de perder as orelhas com o frio.

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