segunda-feira, 21 de janeiro de 2008



21 de janeiro de 2008
N° 15486 - Luis Fernando Verissimo


Noite escura

Imagine-se vivendo no tempo em que ainda não sabíamos fazer fogo. Num mundo sem fogo, não existe luz. Depois que o sol se põe, não se enxerga mais nada. Até o sol reaparecer, não se enxergará mais nada.

Você estará numa escuridão total e irremediável. A luz das estrelas não o ajudará a saber se aquele escuro mais espesso que parece se mover é um parente, um amigo ou um leão.

Uma lua cheia melhorará a sua percepção, mas não muito: cada sombra indefinida continuará a ser uma ameaça e um possível terror. Quando não houver estrelas ou lua, você só saberá o que acontece à sua volta pela audição, o olfato ou, meu Deus, o tato.

Imagine uma noite inteira de ruídos estranhos dos quais você não pode fugir, pois como encontrará uma árvore para subir no escuro? Imagine-se aninhado numa árvore para passar a noite com segurança e descobrindo, ao amanhecer, que dormiu enrolado numa cobra.

Quantos anos os pré-homens terão vivido assim, só conhecendo o fogo dos incêndios provocados na mata por relâmpagos e desesperados por algum meio de domesticá-los, os relâmpagos ou o fogo, para iluminar as suas noites?

O sol seria adorado pelos primitivos porque era a fonte da vida e, afinal, qualquer bola incandescente daquele tamanho passando diariamente pelo céu fatalmente causaria admiração, mas desconfio que o que era adorado, acima de tudo, era a luz.

Não a grande lâmpada mas a sua dádiva, o poder de enxergar. O fim do terror do invisível, ainda mais do invisível que roncava.

O sono é uma decorrência dos anos sem fogo e sem luz. Dormimos porque nossos antepassados não tinham o que fazer no escuro a não ser dormir.

Como continuamos a dormir como fazíamos na savana africana, ou pelo menos a ter sono a intervalos regulares, isto significa que o cérebro humano não tomou conhecimento nem da invenção da fogueira, quanto mais da lamparina, da lâmpada a gás e da luz elétrica.

Para o nosso cérebro, a escuridão da noite continua total e irreversível. Temos sono porque a notícia de que agora podemos enxergar no escuro ainda não chegou ao nosso cérebro.

Sabemos algumas coisas com absoluta certeza sobre os nossos antepassados genéticos. Sabemos com absoluta certeza que todos viveram até a maturidade sexual, que todos tiveram pelo menos uma relação sexual na vida e que todos, sem exceção, eram férteis.

Mas só podemos imaginar o que passaram para sobreviver aos terrores do mundo primevo - como os terrores da noite - portando o nosso DNA.

Se pudéssemos viajar no tempo, o que diríamos para estes antepassados, em que língua, com que gestos? Só agradecer por terem resistido ao duro início da vida humana, inclusive aos leões, e assim iniciado a nossa linhagem não seria o bastante.

O momento requereria alguma solenidade. Talvez um discurso, dizendo que não os tínhamos desapontado, que também tínhamos vivido o suficiente para passar adiante nossos genes e assegurar a sua descendência, milhões de anos depois. E trocaríamos presentes.

Que presente poderíamos levar da nossa era para eles? Eu levaria uma caixa de fósforos.

Nenhum comentário: