quinta-feira, 24 de janeiro de 2008



24 de janeiro de 2008
N° 15489 - Paulo Sant'ana


Morar separados

Quando preguei aqui nesta coluna uma modificação idealística no casamento, dizendo que será mais apropriado que ele comece a se dirigir no início deste século para a transformação de marido e mulher morarem em casas separadas, nem de longe eu quis bombardear a instituição da família.

Só um louco poderia querer extinguir a família, que é ainda a mais eficiente fortaleza contra as adversidades morais e materiais do tecido social.

O que eu quis dizer é que o casamento assim como está instituído atenta contra a liberdade das pessoas, que é afinal o maior valor a ser perseguido pelo homem no seu dever de busca da felicidade.

Consta da liberdade, logicamente, o exercício espontâneo da vontade pessoal. As pessoas têm também o direito de morar juntas se assim o decidirem.

Mas acontece que o casamento contém amarras que impedem na maioria das vezes a felicidade. Uma delas é o senso aguçado de "propriedade" que se estabelece entre marido e mulher.

Desde que se casam, se transformam em "meu marido" e "minha mulher". E se desde já assim se pertencem, nada mais há que conquistar dali para a frente.

E o mesmo acontece com os filhos. Já que é "meu filho" ou é "meu pai", isto é definitivo e desobriga os que estão envolvidos nesta relação a aprimorarem na prática este conceito, tornando-se dignos da condição de filhos ou de pais pelo aprofundamento e aperfeiçoamento dos vínculos afetivos. Se já é "meu", nada mais preciso fazer para vir a ganhá-lo.

O melhor seria que o casamento funcionasse como uma venda em prestações, que se tivesse de quitar em período longo. E não como uma compra à vista, cuja aquisição é definitiva, não tendo doravante de se prestar mais nada.

Quando na verdade é no decorrer da vida que o marido poderá vir a ser verdadeiramente um marido; a mulher, uma mulher; um filho, o filho. Ou seja, isto só acontecerá em realidade na aferição das condutas recíprocas. E não pelo decreto do registro civil oficializado.

No caso do casamento, a idéia de morar separados é brilhante. Porque não finda o namoro. Porque permanece o encanto da incerteza. Porque será constante o fascínio do encontro, sem a obrigatoriedade cansativa dele, que o domicílio conjunto impõe.

Um casal que mora separado se perfuma e se veste com apuro e jeito para encontrar-se, enquanto que o casal que mora junto vai deixando perigosamente de lado esses cuidados pessoais, deixando cair pouco a pouco a peteca da sedução e se precipitando no abismo do fastio e da rotina.

Mas o principal condão utilitário que o domicílio separado no casamento encerra é que, no caso do fim da paixão, do amor ou da amizade profunda, o trauma da separação será quase que irrelevante perto da explosão dramática e inapagável que as rupturas dos que moram juntos significa.

As vidas separadas já tinham até ensaiado despropositadamente esse desenlace, que será suave e facilmente suportado.

Enquanto que a separação dos que moram juntos deixa marcas indeléveis de sofrimento.

O que acontece mais freqüentemente é que casais que notoriamente já estão separados, se moram juntos, continuam morando juntos, para evitar o estrondo da separação física e domiciliar, o que lhes acarreta um martírio contristador.

Enquanto os casais que morarem separados terão até diante de si a vantagem da possibilidade atraente e luminosa, depois de assegurados da solidez indestrutível daquela relação, de um dia passarem a morar juntos.

Entre os que morarem separados, a união logicamente será sempre mais duradoura. Com chances bem maiores de ser imorredoura.

Crônica publicada em 5/03/2000

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