sábado, 19 de janeiro de 2008



19 de janeiro de 2008 | N° 15484
Cláudia Laitano


Inocência e malícia

Sempre achei os filmes de terror com personagens infantis os mais assustadores de todos - se você viu A Profecia ou O Iluminado sabe do que estou falando.

Mas a história obviamente não precisa ser de terror para que o olhar de uma criança provoque uma atmosfera perturbadora. A combinação de inocência e malícia com uma lógica que nem sempre é apreendida com facilidade pelo universo dos adultos transforma as crianças em observadores imprevisíveis, e raramente passivos, dos acontecimentos.

De certa forma, o olhar perplexo das crianças, procurando construir sentido onde às vezes ele não existe, reproduz a nossa própria perplexidade diante de tudo que supera nosso entendimento. Não apenas todos fomos crianças um dia. A maioria de nós continua remando para entender certas coisas vida adulta adentro.

"Não sei por que certas pessoas se referem à infância como a época mais feliz de suas vidas. Eu lembro os meus dias de criança como um período interminável, monótono e triste, onde o medo dominava tudo - medo do desconhecido. Para mim, o paraíso infantil não existe. Não acredito na bondade nem na inocência das crianças."

A frase abre o filme Cría Cuervos, clássico do diretor Carlos Saura que roubou o título de um arrepiante provérbio espanhol: "Cria corvos, e eles te arrancarão os olhos". Depois desse filme, ninguém olha um rostinho inocente sem imaginar que torturantes fantasias passam por ali de vez em quando.

Baseado em um dos grandes livros desta década (o romance Reparação, de Ian McEwan), o filme Desejo e Reparação, em cartaz nesta ardente Porto Alegre de verão, nos apresenta uma personagem infantil tão conturbada e fascinante quanto a menina Ana do filme de Saura. Aos 13 anos, Briony é um pequeno gênio literário em formação - cheia de energia, autoconfiança e imaginação.

Fantasia, malícia e um toque de crueldade, no entanto, se combinam em doses perigosas na adorável cabecinha loira da menina, e ela acaba causando na vida real um mal muito maior do que seria capaz de inventar nas histórias que escreve.

(O filme dá uma pista, mas para se deliciar com todas as sutilezas da mente delirante da personagem você vai ter que ler o livro mesmo - não tem jeito.)

Marcas de Nascença, romance da escritora canadense Nancy Houston lançado no Brasil pela L&PM no finzinho do ano passado, leva ainda mais adiante a experiência de narrar uma história desde a perspectiva infantil.

Dividido em quatro partes, o livro é narrado por quatro crianças de seis anos - bisneto (nascido nos anos 90), pai, avó e bisavó - que a partir de seus relatos constroem um painel de suas respectivas épocas, mostrando como circunstâncias sociais, associadas a escolhas pessoais, moldam o destino de uma família ao longo de 50 anos.

A história, portanto, é contada do fim para o começo, com as trajetórias dos mais velhos pouco a pouco sendo iluminadas pelos mais novos. Além de original, a engenharia da trama permite que a autora fale tanto da Era Bush quanto das feridas da II Guerra, passando pelos conflitos no Oriente Médio.

Mas o mais curioso para quem tem filhos nascidos nos anos 90 é encontrar um narrador que nos obriga a imaginar como nossas crianças vêem suas reduzidíssimas famílias e o complexo e globalizado mundo que as cerca.

O nome que a autora escolheu para o menino viciado em games, Googlemaníaco, autocentrado e superprotegido ao extremo diz tudo sobre esse pequeno corvinho contemporâneo: Sol.

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