sábado, 26 de janeiro de 2008



26 de janeiro de 2008
N° 15491 - Ricardo Silvestrin


Sonhar acordado

O sonho foi estudado pelo Freud. Ele ouvia os relatos dos seus pacientes e se questionou sobre o que tornava possível aquele texto sonhado. Descobriu dois procedimentos da gramática do sonho: condensação e deslocamento. Por exemplo: uma mulher relata que estava num quarto com seu cachorro, seu patrão e seu pai.

Eles nunca estiveram juntos na vida real, mas no sonho estavam. Em determinados momentos, os três viravam um só. Condensação ocorreu quando os três viraram um. Deslocamento porque elementos de contextos diferentes se encontraram.

Tudo isso, descoberto na sessão de análise, era possibilitado pelo medo. O cachorro, o patrão e o pai estavam condensados e deslocados nesse sonho porque todos estavam ligados pelo medo que a mulher sentia dos três.

Todo texto criativo se constrói como o sonho. Criar é sonhar acordado. Só que os níveis de estranhamento que nossos textos criativos causam são filtrados pela nossa razão.

Temos um certo domínio dos efeitos que pretendemos atingir. E permitimos que as nossas obras sejam mais ou menos decifráveis.

No livro O Processo, Kafka construiu uma narrativa conhecendo profundamente a gramática do sonho. Um personagem, Josef K., é acusado por algo que ele não sabe o que é. Trata-se de um processo que ele tem de responder.

No princípio, reage achando que há algum engano. É chamado para investigações. Com o passar do tempo, diferentes pessoas se aproximam dizendo saber do seu processo e se dispõem a ajudar.

Seu tio vem do Interior preocupado com como aquilo poderia enlamear o nome da família. E tudo se passa dentro de um clima de absurdo. As sessões do tribunal são em prédios esquisitos, no meio de vilas e cortiços.

As salas são em portas que se abrem do nada e seguem por dentro de sótãos. Os papos dos que pretendem ajudar não fazem muito sentido. Seqüências de causa e efeito são confusas. Mas o personagem vai cada vez mais assumindo o que ocorre como possível.

O que move tudo é a culpa. Ele é culpado de algo, segundo o tribunal, mas não sabe de quê. O sentimento de culpa desloca e condensa tudo nesse sonho-livro que vamos lendo acordados.

No final, nada se explica. Como no sonho. A menos que se deite no divã e se descubra. Mas obra de arte não é discurso de análise. Ficamos com o prazer de vivenciar o estranho, o prazer da experiência estética.

Muito já se disse a respeito de O Processo. Já viram nele uma profecia, uma antecipação dos regimes totalitários. Já tentaram associar a culpa do texto com os traumas psicológicos da relação entre o autor e seu pai.

Mas fico com um trecho do próprio livro, no diálogo entre Josef K. e um sacerdote a respeito das interpretações de uma história que estava sendo contada: "Não deves dar demasiada atenção a opiniões.

O texto é imutável, e as opiniões muitas vezes são apenas a expressão do desespero acerca disso.".

Nenhum comentário: