domingo, 20 de janeiro de 2008



20 de janeiro de 2008
N° 15485 - Paulo Sant'ana


Ciclone antigo

Toda a minha vida sentimental e amorosa, praticamente toda, pode ser resumida em duas letras de música entre as 2.800 que decorei desde criança.

Eu chorei, pela primeira vez em minha vida, quando minha vida desabou.

Éramos então duas crianças, cheias de alegria e esperança, quando te peguei pelas mãos e te disse:

Eu fiz uma cantiga tão antiga pra você
Pensando que você fosse gostar
Lembrar o nosso tempo de criança
Quando a gente ainda brincava
Eu puxava as tuas tranças
Só pra ver você zangar
Você zangava e me chamava
De boboca, boca torta
Boca torta é a vó...

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Eu fiz uma cantiga tão antiga pra você
Tentando só fazer você lembrar
Que eu era um menino calça curta
De cabelo arrepiado
Que queria ser soldado
Do primeiro batalhão
E ganhar mais de 1 milhão
E a gente se casar
Eu fiz uma cantiga tão antiga.
Tão antiga que você
Nem vai lembrar...

Crescemos nos amando e viramos jovens. O menino de cabelo arrepiado dedicou verdadeiro devotamento a ti, a menina de tranças erigiu-me como seu semideus incomparável.

Até que - foi então que chorei pela primeira vez em minha vida - minha existência desmoronou: a menina de tranças já então jovem deixou de me amar em questão de 15 dias, noivou com um rapagão e casou-se com ele numa cerimônia para a qual fui convidado:

Ela se enamorou de outro rapaz
Depois que um ciclone atingiu
Nosso destino
Nenhum de nós voltou atrás
Quanto orgulho, quanto desatino!

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Eu bebi champanha em seu noivado
Traguei minha mágoa no peito sem rancor
Fui o primeiro a chegar à igreja
E abandonado
Assisti ao orgulho matar
Um sonho de amor...

É o que sempre digo: coração, por que é que tu não paras? Como continuar vivendo sobre esses destroços existenciais?

Como prosseguir ereto, firme, intimorato, se foste vítima desse gigantesco cataclismo?

Como não ser covarde e, no dizer de Shakespeare, não morrer mil vezes antes de morrer, em todas as situações da vida, se este choque de deslealdade e infidelidade se abateu sobre ti, coração, no período da tua juventude, quando a vida era só então incomparavelmente apetecida.

Pobre coração. Não compreendo: por que ainda não paraste?

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