segunda-feira, 23 de janeiro de 2023


23 DE JANEIRO DE 2023
CAPA

As vozes da saudade

Dirigido pelo jornalista Marcelo Canellas, documentário "Boate Kiss - A Tragédia de Santa Maria" estreia quinta no Globoplay

Uma ferida que segue aberta. A tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, completa, em 27 de janeiro, próxima sexta-feira, uma década. Mesmo depois de 10 anos, as famílias das 242 vítimas fatais ainda aguardam a conclusão de uma parte de seu sofrimento - o júri, que condenou os quatro réus à prisão, no final de 2021, foi anulado, por questões técnicas. E os acusados, hoje, estão soltos.

Todo este tempo, porém, foi de luta por parte dos pais, que não desistiram de buscar uma resposta - para que, inclusive, fique de lição e que um episódio como este jamais se repita. Para marcar esta década de perseverança, o repórter da TV Globo Marcelo Canellas conduz e dirige a série documental Boate Kiss - A Tragédia de Santa Maria, que estreia os seus cinco episódios na quinta, no Globoplay.

Em capítulos de aproximadamente 55 minutos, a produção refaz a sucessão de acontecimentos que levaram à morte dos jovens, e, principalmente, mostra as reviravoltas de um processo judicial cujo desfecho permanece imprevisível. O final da produção, que seria o julgamento, teve que ser alterado devido à anulação meses depois. Canellas, então, busca reviver a jornada destas famílias.

- É um grande retrato desta trajetória de 10 anos de um grupo de pais e mães que, movidos pelo amor pelos filhos, nunca desistem. Você pode imaginar o cansaço quando, depois de uma década, eles receberam a notícia do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de que o julgamento não valeu e que tudo vai começar da estaca zero. Mas, mesmo com esta exaustão, não há sinal de que eles vão parar - destaca o jornalista, que nasceu em Passo Fundo e, ainda bebê de colo, mudou-se com a família para Santa Maria.

Logo no começo do documentário, Canellas se coloca como parte da história - inclusive, visitando o campus da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) onde, antes de partir para o Jornalismo, chegou a ser aluno de Agronomia, um dos cursos que organizou a festa da Kiss, naquele janeiro de 2013. Assim, cria o elo entre o espectador e a narrativa que está contando, de maneira delicada e próxima das famílias.

Conexões

Canellas, que em um primeiro momento declinou de embarcar no caso, em 2013, em poucos dias mudou de ideia, por conta deste profundo sentimento que sente pela cidade e pelos seus habitantes. Assim, nos últimos 10 anos, foi responsável por matérias especiais para o Fantástico sobre a tragédia e, inclusive, conta que foi uma das primeiras pessoas a propor o memorial para as vítimas onde, hoje, ainda existe o prédio da Boate Kiss.

- Achamos que, do ponto de vista narrativo, não se podia esconder o meu envolvimento com a história. Por exemplo, fui colega de Ensino Fundamental e amigo de infância de um dos réus, que é um dos donos da boate, o Mauro Hoffmann. São muitos os cruzamentos. Conhecia, também, várias famílias que perderam seus filhos e, ao longo dos anos, aprofundei um laço de amizade com muitos deles - explica.

GZH teve acesso antecipado aos dois primeiros episódios de Boate Kiss - A Tragédia de Santa Maria e, logo no começo da série, imagens do dia do incêndio são mostradas, dando a dimensão do caos que se instaurou naquela madrugada de domingo, na Rua dos Andradas, no centro da cidade. Parte deste material apresentado é inédito, bem como entrevistas e imagens de dentro do local antes da tragédia.

Foi um ano e meio de trabalho para a criação do documentário. Antes disso, porém, a TV OVO - coletivo audiovisual de Santa Maria, nascido como projeto de transformação social e especializado em resgatar a memória da cidade - já contava com uma importante quantidade de material acumulado. Partiu da própria TV OVO a iniciativa de propor a produção para Canellas, que levou o projeto para o Globoplay e, assim, o sinal verde foi dado para a parceria entre o streaming e o coletivo.

É justamente a memória que o documentário quer manter viva. Sob o ponto de vista dos familiares e dos sobreviventes, Canellas ainda aborda que, ao longo dos anos, a cidade onde ocorreu a tragédia passou por uma mudança de humor, o que ele adjetiva como "chocante". Quando ocorreu o incêndio, ele relembra que houve um abraço unânime às famílias:

- Mas, com o passar do tempo, houve um movimento que é uma coisa muito brasileira: você acreditar que, para superar, é preciso esquecer. Este movimento vai crescendo na medida em que o lugar do outro foi ficando cada vez mais distante e difuso na linha do tempo. Então, você já não reconhece mais o lugar do outro e começa a se incomodar com o sofrimento alheio. Esse foi um processo que aconteceu em parte da cidade, e o documentário é uma força contrária a essa ideia de esquecimento e fala que Santa Maria precisa assumir essa cicatriz.

 CARLOS REDEL

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