LIVRO
A OBRA
Charles Cross é um biógrafo raro, daqueles que fazem descobertas jornalísticas durante as apurações, analisam as pistas e não se contentam com os dogmas da oralidade. Sua biografia mais recente, Jimi Hendrix Uma Sala Cheia de Espelhos, comprova tudo isso. Depois de escrever obras como Backstreets: Springsteen, the Man and his Music (1989), Led Zeppelin: Heaven and Hell (1991), Mais Pesado que o Céu: Uma Biografia de Kurt Cobain (2002) e Here We Are Now: The Lasting Impact of Kurt Cobain (2014), esse ex-editor da revista The Rocket que vive próximo a Seattle, nos EUA, volta à história de Hendrix no ano em que o guitarrista faria 80 anos de vida.
Uma pesquisa movida pela inquietude o levou a descobrir onde estava o túmulo da mãe de Hendrix, Lucille. "Foi o momento mais impressionante dos quatro anos que levei para escrever", ele comenta, na abertura do livro. Inconformado com a administração do cemitério Greenwood Memorial Park, que não sabia informar onde estava a sepultura de Lucile, Cross insistiu tanto que foi autorizado a vasculhar a terra de um local próximo com uma pá, ao lado de um coveiro. "Todos os biógrafos que escolhem personagens mortos são, de certa forma, coveiros, com uma pitada de Dr. Frankenstein", prossegue.
Outros pontos, como passagens sobre a tão falada saída de Hendrix do serviço militar, a apresentação no icônico Woodstock, de 1969, e suas relações afetivas, ganharam investigações atentas.
Há um bom tempo dedicado à infância e à adolescência de Hendrix em Seattle, mas isso não torna enfadonha a narrativa do livro. Aos 14 anos, dois acontecimentos definem a vida do guitarrista. Ele assiste a um show de Elvis Presley e vê o pastor Little Richard fazer uma pregação. Sem dinheiro para ver Elvis, o menino assiste ao show do alto de uma colina. O ingresso custava US$ 1,50. Isso em 1957, um ano antes de se dar a história com Richard.
Numa época em que o pianista havia renunciado ao rock?n?roll para devotar-se ao evangelismo, Hendrix o viu saindo de uma limusine para fazer uma pregação em uma igreja. Vestiu a melhor roupa que tinha, mas sentiu os olhares de reprovação aos seus sapatos velhos. Ele diria, mais tarde, que havia sido "chutado" da igreja, algo que a biografia de Cross diz nunca ter ocorrido. Depois do show, esperou até o fim para tocar em Little Richard, como se estivesse tocando em um santo.
Anos mais tarde, Hendrix não só tocaria na banda de apoio de Richard como teria sérios problemas com o velho ídolo. Ao perceber que sua luz poderia ser ofuscada pelo garoto de Seattle, Richard o proibiu de tocar o instrumento com os dentes, colocá-lo atrás da cabeça e, de preferência, não fazer sexo com a guitarra. Hendrix era multado por isso, mas seguia na banda, até o dia em que a situação ficou insustentável.
Robert Penniman, irmão de Richard, era o empresário da turnê. Ao contrário da versão de Hendrix, que dizia ter pedido as contas, ele afirma que demitiu o guitarrista por falta de responsabilidade: "Ele estava sempre atrasado para pegar o ônibus e vivia flertando com as garotas", conta, no livro.
São saborosas histórias sobre os bastidores da feitura de Eletric Ladyland, o álbum duplo, seu último, lançado em 1968 com músicas como Crosstown Traffic, Voodoo Chile, uma versão demolidora de All Along the Watchtower, de Bob Dylan, e Little Miss Strange. Hendrix queria que a capa tivesse fotos feitas pela profissional Linda Eastman, que pouco depois se casaria com Paul McCartney, e escreveu um longo texto para o encarte. Só que nada disso foi aproveitado pela gravadora.
Há mais detalhes também sobre a capa proibida desse disco, com uma foto mostrando 21 mulheres nuas. Uma versão diz que tal imagem seria por causa do termo "eletric ladys", usado por Hendrix para definir as groupies, as fãs que seguiam a banda. A capa, que não agradou nem a Hendrix nem às mulheres fotografadas, acabou sendo vetada.
Sobre a morte de Hendrix, algum mistério continua. Com todo o poder de apuração, Cross não destrincha outras possíveis causas, porque talvez não tenha muito mais a ser destrinchado, mas elucida equívocos. Algumas fake news são historicamente conhecidas por causa dos depoimentos de Monika Dannemann, ex-namorada de Hendrix. Segundo Cross, ela contou várias versões estranhas sobre o que aconteceu naquele 18 de setembro de 1970, quando viu Hendrix morto. Decerto foi mesmo overdose e sufocamento no vômito. A vida do maior guitarrista da história terminou de forma estúpida.
JÚLIO MARIA
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