quarta-feira, 18 de janeiro de 2023


18 DE JANEIRO DE 2023
DIÁRIOS DO PODER

De olho na Argentina

FEDERICO SERVIDEO Diretor-presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira em São Paulo (Camarbra)

Há um ponto de interesse para o Rio Grande do Sul na primeira viagem internacional do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que embarca no domingo para a Argentina, onde deve se encontrar com o presidente Alberto Fernández.

As conversas iniciadas em Brasília, durante a posse, levam a crer que a parceria ideológica se converterá em acordo energético entre os dois governos, a ser assinado no dia 23. A perspectiva é de que o BNDES financie trecho de quase 500 quilômetros de gasoduto entre a região de Vaca Muerta, na Patagônia, e a província de Santa Fé. O valor não está confirmado, mas, desde antes da posse, conforme anunciado pela secretária de Energia da Argentina, Flavia Royon, seria de US$ 689 milhões (R$ 3,6 bi). Em dezembro, o BNDES, ainda sob o comando do governo de Jair Bolsonaro, emitiu nota dizendo que não havia essa liberação. Mas não desmentia as consultas.

A Argentina tem em Vaca Muerta importante reservatório de gás, mas busca mercado para esse produto há mais de 20 anos. Caso seja concluído o trecho da nova estrutura, ela se conectaria a outros gasodutos, permitindo que o produto chegasse ao Rio Grande do Sul via Uruguaiana.

Nos cálculos de Lula e Fernández, os brasileiros preci­sam de gás, e os argentinos, de mercados e investimentos. Na avaliação de Federico Servideo, presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira (Camarbra), o gás é o melhor elemento para fazer a transição energética para energia limpa:

- Com isso, a gente aumenta as exportações argentinas, aumenta o fluxo de dólares que entram e, além de favorecer o mercado brasileiro, favorece o próprio mercado argentino.

A ideia se filia a outro antigo projeto já discutido pelo governador Eduardo Leite: a construção do gasoduto Uruguaiana-Porto Alegre. Com 594 quilômetros de extensão, fecharia o anel do Cone Sul. O projeto seria justamente o ponto de interligação da produção de gás da Argentina com o mercado brasileiro.

O diretor-presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira em São Paulo (Camarbra), Federico Servideo, considera o encontro entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Alberto Fernández, na Argentina, na próxima semana, fundamental para implementar uma agenda que envolve grandes temas bilaterais. No encontro, que ocorrerá em Buenos Aires, serão discutidos assuntos como a modernização do Mercosul, o acordo do bloco com a União Europeia, a questão energética e até uma possível moeda única, tema que voltou a público recentemente depois de um encontro entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o embaixador argentino em Brasília, Daniel Scioli. Lula viaja no domingo à Argentina em sua primeira visita ao Exterior como presidente. Na sequência, ele irá também ao Uruguai. A seguir, os principais trechos da entrevista com o dirigente.

Qual a expectativa para o encontro entre os presidentes Lula e Fernández?

As expectativas são grandes, há uma agenda de temas importantes sobre como fazer o gás argentino chegar ao Brasil para ser importante na transição energética, o sistema de moedas únicas, para eliminar as transações via dólar entre os países, e o aumento do fluxo de exportações brasileiras para compensar em parte o crescimento que a China tem tido nos últimos anos. As expectativas são grandes porque os temas são grandes: como modernizar o Mercosul para deixarmos essas travas que não permitem o desenvolvimento dos países, notadamente a redução da tarifa externa comum, que originou muitos ruídos no ano passado. Há muitas expectativas pela visita em si devido à representatividade de Lula e pela agenda.

Argentina e Brasil enfrentam problemas: o primeiro do ponto de vista econômico e o segundo pela instabilidade institucional. Como isso atrapalha o comércio?

Obviamente, atrapalha. Não tanto o comércio, mas os projetos, investimentos e grandes decisões. O comércio corrente não atrapalha, as exportações brasileiras para a Argentina cresceram significativamente no ano passado, as importações também, muito acima da média. Mas atrapalha os grandes projetos de investimentos. Esses temas que te falei não são para um governo, mas para décadas. São temas que colocariam a relação bilateral em outro patamar. Não falaríamos de crescer 20%, 30%, mas 300%. A macroeconomia argentina atrapalha significativamente nesse sentido. Instabilidades, como a que o Brasil atravessa agora, postergam grandes decisões de investimento, de relocalização de indústrias.

Sobre a tarifa externa comum, qual o ponto principal a ser debatido?

Argentina não quer reduzir essa tarifa para não facilitar as importações, e o Brasil quer reduzi-la para controlar a inflação. Na medida em que a inflação no Brasil está sob controle, por firme atitude do Banco Central e outros componentes, e na medida em que houve aqui troca de governo um pouco mais harmônica com vizinhos, como a Argentina, acho que a pressão, pelo lado do Brasil, para se reduzir a tarifa, tende a diminuir por um tempo. Por outro lado, pela Argentina, a pressão por não reduzir vai continuar. A tarifa externa comum limita a potencialidade do Mercosul. 

A gente quer um Mercosul que seja uma união aduaneira, que é o que é? Historicamente, o Mercosul teve mais benefícios políticos e institucionais do que econômicos: a cláusula democrática, para mim, acabou sendo mais importante do que a cláusula econômica. Temos de colocar essa discussão: uma união aduaneira é suficiente? Acho que não. Não adianta só modernizar o Mercosul, eliminando a tarifa externa comum. Precisamos ser muito mais ambiciosos e tomara que o presidente Lula lidere isso: dar um passo além de uma mera união aduaneira para um mercado comum de fato para aproveitar as oportunidades que estão fora do Mercosul.

Quando se fala de Mercosul, sabe-se dos entraves. Falar em moeda comum não é algo utópico diante de tantas coisas que não avançaram?

É difícil para o Brasil aceitar, porém, à medida que os bancos centrais assumirem os riscos próprios de implementar essa moeda, pode sair. O problema é que com uma inflação de 100% na Argentina e com a deterioração da moeda, independentemente de que os bancos centrais façam sua parte, vai ficar muito difícil convencer os exportadores brasileiros a aceitar o peso. E mais difícil ainda, por incrível que possa parecer, vai ser os exportadores argentinos aceitarem o real. Porque, nós, argentinos, pensamos em dólares. A percepção do empresário brasileiro é complexa: a gente estava preocupado aqui com uma inflação de 10%, os argentinos têm uma inflação de 100%. É um tema que vai exigir não só um marco regulatório, mas uma mudança de mentalidade muito grande dos atores econômicos dos dois países.

Com relação ao acordo Mercosul-União Europeia, há muita resistência de alguns países como a França. Como destravar?

Somos muito favoráveis por destravar o acordo por dois motivos. Primeiro, porque é um negócio de US$ 750 milhões para o Mercosul. Mas esse não é o principal motivo. O principal é que esse acordo vai obrigar a modernizar, flexibilizar o próprio Tratado do Mercosul. Como te falei, o Mercosul precisa ser atualizado, modernizado. Está velho. O acordo com a UE força essa atualização.

Em questões ambientais, por exemplo.

Em questões ambientais, tributárias, eliminar barreiras, uniformizar todo o sistema de certificação de produtos. Não faz sentido que um carro tenha de ter certificação argentina e brasileira. Que um alimento tenha certificado lá, e que a etiqueta de lá não sirva aqui, e vice-versa. Há um monte de ineficiências estruturais que o acordo com a UE vai eliminar. Os europeus vão dizer: "Fiz um acordo com o Mercosul, se (o produto) vem do Brasil ou da Argentina, tanto faz. Mas a etiqueta tem de ser única". Mas convencer os franceses não será fácil. Tomara que Lula consiga. Obviamente, para Bolsonaro era impossível. Também não sei o quanto Lula está convencido desse acordo. Porém, se alguém é capaz de convencer os franceses pode ser o presidente Lula. A pergunta é se o presidente Lula está convencido do acordo.

DIÁRIOS DO PODER

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