14 DE JANEIRO DE 2023
FRANCISCO MARSHALL
A HORDA
Houve e há muitas culturas sofisticadas, em todos os continentes e em todas as eras, mas o que chamamos de civilização liga-se à cultura grega (e sua ideia de pólis), e ao mundo romano (e sua noção de civitas): viver em uma cidade, com certa graça, sob uma ordem institucional ao mesmo tempo violenta e harmônica. Civilização implica pudor e temor a um pacto coletivo. As discordâncias graves são tratadas como crime, pois agridem um modo de vida saudável.
A era moderna herda e amplia essas definições, e por isso escrevemos Estado com inicial maiúscula, entificado. Os piores males do Estado moderno são o absolutismo e o totalitarismo, e o antídoto a estes males sempre foi e será a ideia grega de democracia, em ordem republicana. Há corretivos para o Estado moderno, construídos com muita luta, contra iniquidades, racismo e preconceitos que são parte genética do poder elitizado nos últimos séculos.
Hoje, todavia, fenômeno de outra ordem nos perturba: eis-nos diante da horda que ora atacou e violou o Estado no coração de nossa frágil república, em nossa sempre combalida democracia. Qual a natureza, meios e finalidades desta horda, e o que deve ser recolhido dialeticamente, como lição, e o que combatido, como ameaça? Que horda é essa, e como reagiremos?
Os termos barbárie e vandalismo nos chegam impregnados do etnocentrismo greco-romano, para quem o outro é sempre inferior; ou fala um incompreensível bar-bar-bar, como os trácios, ou invade Roma. Por isso ora adotamos o termo horda, que tem origem siberiana, e requer igual cautela. Ordu, no mongol, era uma unidade militar e, logo, as estruturas de poder à sua volta. Poloneses adicionaram o H usado em todos os idiomas europeus e que aparece em nossa palavra horda.
O preconceito aqui é desfigurar o povo mongol como incivilizado, desde que conquistou Constantinopla, em 29 de maio de 1453; ora, Mehmet II e sua corte eram sofisticados a seu modo, bem diferentes do que chamamos horda, para designar o grupo violento que ora assalta e viola o Estado no Brasil. Muitos chamam estes de vândalos e bárbaros, ou de terroristas e fascistas, mas o termo horda cai melhor.
Fazem parte de uma unidade de poder militar e militarizada, tanto em sua estética ridícula e clamor paramilitar como na subordinação patética à imagem e fins da caserna e de seus cúmplices. Essa gente incauta e intranquila atua à sombra de algo ainda mais sombrio, a ambição de poder de militares e, bebendo whisky Johnnie Blue com estes, empresários oligarcas, que financiam terroristas, e pastores teocratas. Por trás da horda que destruiu nosso patrimônio está o poder militar. E é isso que nós, que gostamos de civilização e democracia, precisamos compreender e corrigir com rigor, vigor e plena legitimidade.
Fomos e somos atacados por militares antidemocráticos e covardes, que usam os meios onerosos que lhes emprestamos para fins ilegais e maus. Se vamos salvar a civilização no Brasil, será contra a horda. Degredo e cadeia para verdes venais e podres e seus sequazes, e logo nos arranjamos, com nossas diferenças, diálogo e civilidade.
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